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“Como eles recebem o trabalho corporal? – Paciente 2” – Terapeuta Ana Maria Galrão Rios

(Revista “Hermes” – no. 1)

Quando eu estava tentando encontrar um tema sobre o qual escrever, e já a ponto de desistir, a nossa eterna aliada sincronicidade me ajudou e, numa sessão de terapia, uma paciente comentou que gostaria de ser escritora. É uma mulher adulta, profissional na área da saúde, inteligente, sensível e introvertida. Como ela tem por hábito escrever cartas, eu pedi a ela que escrevesse sobre suas impressões a respeito do trabalho corporal na terapia para que, eventualmente publicássemos nesta revista. Ela, muito corajosamente, resolveu correr o risco.

Antes de qualquer coisa gostada de agradecer a ela pela generosidade em partilhar suas experiências, pela ousadia, honestidade e sensibilidade que demonstra, neste artigo, nas sessões e na sua vida.

Seu relato foi o seguinte:

“Lá estava eu deitada naquela cama turca, coberta com uma manta xadrez que deixava as pés de fora descobertos. Naquela hora sempre tinha uma preocupação besta: “Será que meus pés estão bem limpos ? Olhava o teto e pensava que tudo aquilo era muito estranho: era de manhã, tantas coisas haviam para serem feitas em casa: montes de roupa para pôr na máquina de lavar, o almoço por fazer (acho que hoje será salsicha novamente ), todas aquelas tarefas chatas, e ainda havia o trabalho fora de casa à tarde, e eu ali, feito uma idiota olhando o teto branco, escutando as passarinhos cantando lá fora (sempre escutava um sabiá), e me sentindo terrivelmente mal.

O que me segurava ali, naquele consultório, era o sofrimento que, não sei como, havia tomado conta de mim e que agora já parecia um monstro faminto prestes a me devorar.

O meu mundo até então, feito de coisas simples banais comuns a qualquer mulher casada com filhos, profissão, casa, cachorro, gato, papagaio, parecia que desmoronava, que se desfazia como uma massa sem consistência.

O que estava acontecendo? Não sabia responder. Não sabia ver onde estava o erro.

Será que “aquilo ” faria algum bem para mim? Faria alguma coisa mudar na minha vida? Eu mudaria meu pensamento com relação ao mundo, às pessoas? Faria alguma diferença no final? Não sabia. Mas, enfim, estava ali deitada tentando fazer alguma coisa por mim mesma. Acho.

“Ela” pegava nos meus pés, dedo por dedo, e eu sentia aquele toque suave de sua mão, e, ao invés de me sentir bem, relaxada como eu achava que deveria sentir mais irritada eu ficava. A vontade era chutar sua mãe, seu rosto, gritar jogar fora as cobertas e sair correndo porta a fora.

As vezes aquilo tudo me parecia uma espécie de charlatanismo, de “benzeção”, de passe espiritual.

“Relaxe”, vinha uma voz suave de muito longe. E eu me sentia aninhar naquela cama. Às vezes as mãos cresciam parecia que ficavam enormes, como mãos de gigante. Somente as mãos ficavam enormes, o corpo continuava pequenininho. Então eu me lembrava daquele livro que havia lido na adolescência onde um homem acordava de manhã e percebia que havia se transformado em barata.

Talvez ocorra alguma transformação em mim também Talvez eu me transforme também num bicho, num gigante, ou num ser disforme com corpo pequeno e cabeça bem grande, ou corpo pequeno mãos grandes.

E então começava a ficar com vontade de rir. Rir mesmo, gargalhar. Achava aquilo tudo meio sem sentido, meio ridículo.

– “Sinta a cabeça. o pescoço, os braços. Sinta seu corpo. ” E eu escutava aquela voz suave, vinda de longe.

Mas aquele toque de sua mão continuava me irritando. Ainda havia os montes de roupa em casa ainda havia o sofrimento, ainda havia a falta de sentido em tudo, ainda havia a indiferença, ainda havia a vontade de continuar tentando. Tentando o quê? Para quê?

Estar viva sentir-se viver buscar a felicidade, estar em paz ficar em paz comigo mesma. Ser feliz!

Talvez fosse melhor procurar uma nova religião. Talvez não fosse encontrar ali, naquela espécie de massagem, ou de relaxamento (não consegui guardar a nome “daquilo “) nenhuma resposta a todas as minhas questões. Quem sabe o Budismo? Não havia tentado esta não conhecia esta religião ainda.

Mas felicidade, paz de espírito, são apenas conceitos, não são?

Aquela mão no meu rosto me dava vontade de segurar em sua mão, apertar bem forte, sentir seu toque mais forte, pedir para parar com aquilo. Não continue, por favor.

Pronto, lá vem a memória de novo, trazendo coisas velhas, esquecidas, sofridos. ” – Mãe, me põe no colo. ” Peço de novo hoje. Não era um pedido de criança mas um me põe no colo agora. Sou criança agora. Sou criança ainda Tenho quatro anos e choro.

“- Mãe, quero você agora quero seu colo, quem chorar sem motivo, sem ninguém me pedindo para eu parar.”

Pronto, acabou. Não havia mais nenhuma mão pegando no meu corpo. Que alívio! E eu lá, afundada na cama as pernas pesadas, os braços pesados, as lágrimas escorrendo pelo canto dos olhos, tentando disfarçar e sentindo um alívio tão grande, como quem passou por uma prova de coragem. A cadeira do dentista é melhor pensei, lá eu durmo.

“- Sinta seus pés, seus braços, movimente devagar seu corpo… ” a voz suave dizia.

E eu começava a me mexer a me mover e sair daquele mundo confuso e tenso. Agora vou sair correndo pela porta a fora e não volto mais. Nunca mais. Não quero mais.

“- Tudo bem? ” a voz perguntou.

“- Tudo. ” (lá vem aquela pergunta quer ver?)

“- Alguma observação?”

“- Nada (Não falei que viria?) Só um peso nas pernas”

Como poderia, em poucas palavras, descrever um universo confuso, sem seqüência, sem lógica cheio de sentimentos fortes, de vontades estranhas?

Como poderiam as palavras traduzir, filtrar o que a mente divagava em poucos minutos?

Acho melhor ficar calada.

Mas sabia que na semana seguinte começada tudo novamente: o medo, a ansiedade, a vontade de sair correndo, a vontade de chorar sem saber porque, a mão crescendo, a vontade de rir, a cabeça crescendo, sentindo-me flutuando no espaço sabendo que não estava, ou aquela sensação do mundo de cabeça para baixo, as paredes entortando, a cama virada, a acama rodando no sentido horário, no sentido anti-horário, em todos os sentidos…

Sei lá quantas coisas diferentes seriam ainda sentidas, e a resposta seria sempre a mesma: tudo bem!

Como dizer tudo isso assim com todas as letras, com todas as palavras? Soam como maluquices, invenção, me atordoam me levam para não sei onde. Melhor ficar quieta. Já vi muitos fantasmas por aí. Não os quero mais comigo.

Quem sabe isto funcione como uma espécie de exorcismo, e eles vão embora e não voltam mais.

Os fantasmas foram embora sim!

Mas não foram embora de uma hora para outra, não.

Atormentaram nas noites de insônia, invadiram meus sonhos em tenebrosos pesadelos, conversaram longamente comigo nas horas a sós comigo mesma. Alguns foram embora para sempre, outros deixaram de ser fantasmas e se tomaram amigos, mas alguns ainda estão aqui, insistiram em ficar e voltam a me assombrar quando me ponho a vasculhar os cantos de minha mente em busca de explicações ou de sentido, ou de soluções para os enigmas que surgem, para os quais não encontro, na maioria das vezes, uma resposta um caminho, e me perco com suas aparições.

Ao penetrar neste mundo meio mágico, meio místico, meio científico, meio irracional, meio emocional (desculpe, Ana, por alguns adjetivos), me encantei com tudo que passei a conhecer, e a ter uma visão diferente da que até então tinha de mim mesma do mundo ao meu redor, das pessoas que conhecia ou com quem convivo, de tudo, enfim.

Esta nova visão do mundo e este deslumbramento todo, fez com que eu passasse a falar a falar mais ou menos como a Emília, do sítio do Pica-pau Amarelo, que, após tomar as pílulas que a tornaram uma boneca falante, falou por horas seguidas até cair desmaiada.

“- É fala recolhida “, diagnosticou o Dr. Caramujo, na estória. Acho que era meu caso também: tratava-se de um problema de fala recolhida associado a outras coisas.

E, após essa falação toda tive alguns efeitos colaterais da mesma senti-me frágil e vulnerável perante uma pessoa que, de repente, conhecia tudo a meu respeito, e para a qual eu havia exposto minha alma e que, levado por mim conheceu minhas dores, fracassos, temores, anseios e vitórias, e da qual eu sabia apenas o nome e o número do telefone, para recorrer nas horas de angústia e ansiedade.

Esta dependência de outra pessoa que se instala a partir das confidências feitas, acaba também nos sufocando de certa maneira e sendo uma questão a mais a ser resolvida. Esta via de mão única me incomoda bastante. Tento ainda me esconder para não mais ser pega na minha própria rede, como quando criança entrava debaixo da cama para me esconder do farmacêutico e não tomar injeção. Sempre pensava que lá ninguém me acharia.

E ainda hoje, mesmo tendo passado todo esse tempo de terapia e a minha confiança em você chegue perto do ilimitado, eu me pergunto se realmente você tem a exata noção do peso e da responsabilidade que é entrar na vida de uma pessoa vasculhando cada canto escondido, e fazê-la acreditar que seu sonho é possível de se realizar seja ele qual for? Que não há limites para sonhar? Que não há limites para se querer ou para quando se quer tentar?

Vamos trocar de cadeira e fazer uma nova brincadeira: agora eu escuto e você fala Você vai me contar qual é a sua fantasia maior, qual seu sonho que não se realizou, sua frustração, medos, alegrias, tristezas, me dizer afinal, quem é você.

Esta é a minha fantasia maior em relação a você como terapeuta.

Afinal, é isto o que sinto como paciente de uma terapia.

Ana, agora é diretamente com você? Por tudo isso, não vou entrar nesta fantasia que posso voltar a sonhar como uma adolescente, que ainda há tempo na minha vida para me tomar uma jornalista ou uma profissional desta área porque na minha ótica é preciso mais que a vontade e o sonho. É necessário o prepara técnico para isso. Esta fantasia de sonhar e realizar os sonhos, penso ser mais sua do que minha. Talvez seja essa a sua fantasia em relação a mim.

Só estou cansada do que faço, e, num momento de fraqueza, quando a minha inteligência dormia e a minha alma perambulava, um duende plantou essa idéia não sei se em mim ou em você, ou se deixei escapar que, em dia já muito distante, sonhei em ser jornalista. Sonhei.”

Maria Isabel Marcondes Pontes

*

A Terapeuta:

“O que eu posso fazer para dar um empurrão no seu sonho, Bel, é publicar seu relato aqui. Se meu sobrenome fosse Frias, Mesquita ou Marinho, você pode imaginar, (provavelmente apavorada), onde estaríamos agora. Como eu já disse, não quero ser sua única fã. É uma posição desnecessariamente solitária…

Quanto a mim, o que eu tenho a dizer é que, enquanto cada pessoa que eu encontrar me der a oportunidade de sonhar para ela um sonho, meu trabalho tem sentido.

E tudo vale a pena.”

Ana Galrão

“A versão do paciente – Paciente 1” – Terapeuta Maria Rosa Spinelli

Este é um relato de uma pessoa tratada por profissionais com postura psicossomática, aplicando o método da Calatonia. Ainda que todos tenham permitido sua publicação, nem a paciente nem os profissionais implicados no caso foram identificados. Verifique os resultados.

Maria Rosa Spinelli – Terapeuta

“Procurei um trabalho corporal, a Calatonia, por indicação de amigos. Sentia na época muita resistência em fazer uma terapia na qual precisasse falar muito, embora eu seja considerada uma pessoa falastrona. E devo confessar que, a princípio, imaginei que a técnica me ofereceria apenas relaxamento. Ainda assim, nas primeiras sessões não conseguia relaxar. Observei então que, certo dia, passei a ter umas sensações diferentes. Nos momentos de relaxamento me vinham à mente imagens estranhas e, às vezes, cores que flutuavam.

Cheguei a experimentar aquelas ‘sensações estranhas’, mesmo após a sessão, no momento em que estava num jardim. Senti a súbita necessidade de aconchego, ao mesmo tempo em que parecia estar cheia de energia e que não precisaria nem dormir. No dia seguinte, apesar de pálida, estava me sentindo bem, sem tristeza, sem sono, carregando a sensação de que algum fato que eu agora ignorava tinha se passado.

Também costumo voltar alegre das sessões, mas com a impressão de ter uma ‘carga elétrica’ acumulada. Nessas ocasiões, desejo fazer coisas e falar muito sobre o que aconteceu. Por outro lado, sinto que preciso ser ninada e a frustração por isso não acontecer. Vem-me à cabeça a palavra mãe e sinto o coração explodindo, batendo mais rápido, com ansiedade. Levanto-me e sinto vontade de sair, andar, chorar, rir, enfim, de viver.

Numa espécie de associação de idéias, me vêm outras palavras: mãe… perda… preciso… ternura… me acaricie… traição. Fantasio a imagem de alguém me cobrindo. Interessante notar que nunca tive dificuldades para dormir. Agora durmo e logo depois acordo, com a certeza de que sonhei, mas não me lembro com quê. A única lembrança é de uma figura masculina que poderia ser meu pai, não sei.

O mais interessante é que não tenho tido vontade de conversar sobre tais sensações mas fico horas pensando a respeito, ou melhor, sentindo essas coisas e começo a observar que minha autopercepção é melhor agora.

“Como um bebê, que ridículo!”

O meu joelho esquerdo dói, o meu braço dói e não sei por que abraço o travesseiro para me aconchegar. Adormeço e acordo fria, como se precisasse de muito carinho para me aquecer. Sinto falta de ser mimada mesmo, feito um bebê. Que ridículo! Já tenho mais de 30 anos.

Sinto um vazio, provocado por algo inacabado. No escuro, como numa espécie de lamento tenho vontade de ‘não apague a luz, fique comigo até eu dormir; espere eu acordar e saber que realmente você existe’. Mas quem? Preciso saber que você existe e nunca vai me deixar, que você me ama. Acho que poderia dizer isto a alguém, que não sei quem é. Essas sensações são demais angustiantes mas não quero deixar de tê-las, sei que preciso delas. Penso que estou ficando deprimida ou masoquista.

Agora só me vêm muita tristeza e vontade de estar só, vendo a natureza, olhando o verde, ouvindo o som da água cair, como em um riacho, e chorar (mas por que?- a minha vida é boa, tenho vários amigos, me sinto amada e, na verdade, não estou só, tenho meu namorado, a minha família). Não consigo entender por que esses sentimentos aparecem.

A sensação é de abandono, de não ter com quem contar. Voltam-me à lembrança cenas da infância: o tombo, o pesadelo, o medo, o dia da injeção que recebi nos braços de meu pai, a fuga para a escola, a visão de espancamento, o meu pavor, o meu sofrimento, a cadeira diferente, o primeiro livro que ganhei, o café da manhã, minha mãe preparando minha sopa de pão, a hora da escola, meu pulôver vermelho, a briga, a febre, a faca. O abandono de meus irmãos – eu era pequena, chata e doente.

Lembro-me também das três cirurgias por que passei. Até quando vou continuar escapando de outras? Por que não tenho sensibilidade para dores, o que me falta para sentir o começo de uma doença? Quando percebo estão avançadas. A única certeza é da morte, mas como contestar isto?

Vômitos. Tenho horror a eles, mas são constantes e sangrentos. Vários exames – tenho a sensação de frio e é um frio úmido, que vem dos pés para as pernas, como se tivesse feito xixi e batesse um vento.

Bem vou parar. Estou ficando triste demais.”

Após esse período de anotações, a paciente relata que deixou de escrever, porque se sentia triste demais e com vontade imensa de deixar tudo:

“Não era vontade de morrer nem de sumir, mas de ter um lugar de muito sossego e paz. Mas a minha vida, fui eu que a escolhi assim”. (sic)

Importante descobrir-se

Ela disse ainda que, por mais que sofresse, tinha de estar mais consigo mesma, tentando buscar a si própria dentro de “alguma coisa nebulosa”. Observem que, durante todo este processo, esta pessoa não solicita de sua terapeuta nenhuma interpretação, por acreditar que seria mais importante descobrir-se através das sensações e imagens que sobrevinham a cada sessão e a cada noite.

Por fim, relata que se sentiu muito bem, que cessaram as imagens, e por isso deixou a terapia, não voltou a fazer Calatonia.

“Tudo realmente parecia estar muito bem, mas andava mais quieta. Os amigos percebiam isto. Eu não. Comecei a ter um certo nojo dos cheiros de comida. Primeiro, foi com relação à comida japonesa, apesar de sempre ter adorado comê-la, até então. Depois, passei a ter aversão por carne, chocolate, doce e, gradativamente, deixei de querer comer tudo. Quando forçava, sentia-me muito mal e vomitava tudo. O mal-estar se generalizava e aí não mais conseguia identificar as sensações.

Mas nunca negligenciei minhas responsabilidades. Fui percebendo que deixava de comer, só isso.

Um dia, precisei ser levada ao Pronto Socorro. Parecia ser uma labirintite, mas os exames não comprovaram nada. Foi então que voltei a procurar a terapeuta. Senti ainda que precisava daquele abraço por mais tempo.

Minha terapeuta me orientou a procurar um gastroenterologista, mas isto eu já estava fazendo há dois anos. Tomava doses diárias de um medicamento, sem grandes resultados pois continuavam os regurgitamento, vômitos e azia.

Nesse período comecei a piorar também emocionalmente. Comecei a experimentar uma sensação fria no centro de meu peito e de afastamento das pessoas. Parei quase totalmente de comer e me sentia fraca. Estar com anorexia era o meu medo. Conhecia o quadro através das revistas, mas não tinha muito mais informação a respeito.

Não sentia mais fome nem o sabor dos alimentos. Eles inchavam em minha boca. Daí, passei a deixar de beber até mesmo água. Fiquei preocupada e a minha terapeuta começou a ligar para minha casa nos horários em que, ela sabia, deveria estar comendo ou tentando comer. Interessante, comecei a me alimentar só com coisas muito leves enquanto falava com ela.

Foi quando mudei de gastroenterologista. Procurei, por indicação, um médico que também seguisse a postura psicossomática (devo confessar que para mim psicossomática era uma especialidade).


Exame não-invasivo

Três meses depois, cheguei ao consultório dez quilos mais magra, cheia de medos com mil e uma fantasias, associando meu estado à possibilidade de ter Aids ou até câncer. O médico ouviu tudo, olhou todos os exames que já havia feito e, pacientemente, me deixou relatar todo o meu histórico de doenças, desde a infância até o momento atual.

Só então, calmamente, relacionou as doenças às dificuldades da vida atual, das relações familiares e de nossos envolvimentos sociais e pessoais. Examinou-me clinicamente e sugeriu que eu fizesse mais um único exame, não-invasivo, para verificar a deglutição. Receitou-me um medicamento e eu saí dali bastante aliviada. Ainda com medo, mas me sentindo mais confiante, querendo acreditar que sua confiança e minhas queixas estavam dentro de uma sintonia, e que agora eu poderia realmente melhorar”.

Nessa ocasião a paciente começa a perceber que, ao sair de São Paulo e conseguir ficar relaxada, seu estado geral melhorava. Porém, se comesse algum alimento mais forte ou condimentado, sentia novamente as tonturas, tinha a micção aumentada e os vômitos repetidos. Descobriu também que seu organismo agora só aceitava alimentos leves mas que, ainda assim, não podia pensar que estava comendo, para conseguir se alimentar.

Outras vezes o que a ajudava a alimentar-se melhor era pensar na sua terapeuta. A luta para comer era uma coisa absurda e dolorosa. Ora ela se sentia forte e capaz, ora se sentia necessitada de colo e muito fragilizada. O mais inaceitável, porém, segundo ela, era a consciência de sua dependência com relação à figura da terapeuta.

Aceitar a mamadeira

Um dia, sem pensar, disse à terapeuta ao final de uma sessão de Calatonia: “Já aceitei a mamadeira”. Depois prosseguiu: “Senti vergonha pelo que havia dito, pois sempre imaginara ser uma pessoa racional. Mas ter dito aquela frase me fez bem. Não sabia bem o porquê, mas tinha a certeza que estava começando a aceitar alguma coisa de que precisava muito. Mais tarde percebi que o que precisava era de ternura e do amor que essa terapeuta me transmitia. Depois disso, passei a me sentir mais feliz, a voltar a ser quem eu sentia que era.

Meus vômitos diminuíram. Numa das consultas com o gastroenterologista falei-lhe sobre a percepção de minha própria ansiedade. Ele me ouviu atentamente, demonstrando valorizar minhas palavras e me explicando o quanto era importante essa minha percepção. Disse-me também ter percebido em mim essa ansiedade e que meus sintomas não tinham classificação específica. Na verdade, eles eram mais funcionais e, por isso, teria que permanecer com os medicamentos e com seu acompanhamento médico até que me sentisse realmente bem e voltasse a comer de tudo de forma moderada. Orientou-me para não deixar a terapia enquanto isso não ocorresse. Senti-me cuidada, muito bem cuidada, crescendo novamente, agora com mais tranqüilidade.

O que me aconteceu em termos técnicos, não me importa. O mais importante para mim foi a confiança que tive nesses dois profissionais, o enfrentamento do medo da dependência e a percepção de minha carência afetiva, que gerava em mim a sensação de estar desprotegida diante do mundo.

Vejo-me hoje muito bem, a ponto de permitir essa entrevista. E agradeço isso a esses profissionais, por não temerem manifestar seu carinho aos pacientes. Foram eles que me deram tempo para que eu descobrisse minhas necessidades e descobrisse, à medida em que fosse vencendo meus medos, do que precisava e tinha buscado ao longo de anos acumulados de histórias, até perceber que queria mudar minha forma de amar e me permitir ser amada por outras pessoas além de meus pais. Espero que isto ajude outras pessoas”.

*

O que é Calatonia?

CALATONIA: é uma metodologia de trabalho de abordagem psicossomática, que traz uma contribuição ao uso do corpo em psicoterapia, conciliando a noção de equilíbrio de mente e corpo. Surgiu da proposta de Pethö Sándor (1969), visa obter a descontração muscular e, paralelamente, fazer a pessoa alcançar um estado de tranqüilidade e introspeção. O termo deriva do verbo grego “Khalaó” e significa: relaxamento, afastar-se do estado de ira, fúria, violência, abrir uma porta, desatar amarras, deixar ir, perdoar os pais, retirar o véu dos olhos.

DESCRIÇÃO DO MÉTODO: o relaxamento do paciente é alcançado pelo terapeuta através de estímulos monótonos, oferecidos por meio de toques suaves e seqüenciais nos dedos dos pés, no calcanhar, na convergência tendinosa do tríceps sural da região posterior da perna (barriga da perna). O paciente fica deitado em decúbito dorsal, com os braços estendidos ao longo do corpo e de olhos fechados, de preferência.

Maria Rosa Spinelli é Psicóloga Clínica e Diretora Cientifica da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática – Regional São Paulo.

 

 

“Algumas observações e comentários após relaxamento” – Isis Meira

O verbo relaxar, é popularmente entendido como significando soltar, distensionar. No Aurélio encontra-se: “Relaxar V.T. Tomar frouxo ou lasso, debilitar, enfraquecer, afrouxar, perder a força ou o vigor. Relaxação sf. Diminuição do vigor muscular.

Mesmo entre profissionais da área da saúde muitas vezes é assim que se compreende relaxamento: é uma técnica usada para soltar as tensões.

Uma vez um médico me disse que era contra-indicado aplicar relaxamento em hipotônicos, porque eles ficariam mais hipotônicos ainda. Desde então preocupo-me em enfatizar para alunos e clientes que os objetivos do relaxamento são: o equilíbrio físio/psíquico e o desenvolvimento da consciência, e que portanto, tanto pessoas hiper-tônicas ou que tendem á hipertonia, como pessoas hipo-tônicas, ou que tendem à hipotonia, se beneficiam como relaxamento e o trabalho corporal de modo geral.

Outra crença é a de que durante um relaxamento a sensação deve ser de bem-estar, satisfação. Deve-se pensar apenas em coisas boas, e para isso, dirige-se o pensamento, afastando-se o que não é considerado agradável e provocando-se o que é considerado agradável. Por isso também enfatizo a importância do deixar acontecer e do lidar com o que surge, aceitando e acolhendo todas as manifestações, mesmo as consideradas desagradáveis, reconhecendo que muitas vezes, estas liberações do inconsciente podem surgir como desconforto, angustia, dor.

*

Algumas observações colhidas em minha vivência clínica ilustram os comentários acima feitos:

Quando M. fez pela primeira vez um relaxamento em minha clínica, suas observações foram de que nada tinha percebido e nada tinha mudado. Sentia-se como antes, o que, provavelmente significava que de nada tinha adiantado fazer relaxamento.

Foi-lhe explicado que não necessariamente, ela deveria sentir coisas diferentes e que ela continuasse a observar, para ver o que surgia.

No dia seguinte M. telefonou pata a clínica contando que não tinha dormido durante toda a noite devido a um enorme cansaço que estava sentindo, e acrescentou: – eu me sentia tão cansada, que era como se eu tivesse carregado um grande saco pesado por muito tempo e agora eu o tivesse posto no chão.

Essas observações são cheias de significado e nos informam da eficiência do relaxamento para a liberação das tensões e dos conteúdos contidos no inconsciente.

M. entendeu a mensagem e percebeu o quão importante fora aquele trabalho corporal pata o alivio de suas tensões e a consciência de como estava seu corpo.

*

S. fazia relaxamento em uma de suas sessões de terapia quando apresentou um forte tremor que percorreu a sua coluna, chacoalhando todo o corpo. Após este tremor S. relatou que percebeu todo o corpo alinhado. Como terapeuta, pude também observar o tremor relatado e seus efeitos no corpo de S. Pensei comigo mesma: se eu quisesse instruí-lo a alinhar o corpo conscientemente, ou se ele tivesse querido fazer isso sozinho, não feriamos conseguido efeitos tão surpreendentes, mas o corpo “sabe” como fazê-lo.

*

V, tinha sofrido um acidente vascular cerebral e apresentou uma afasia severa. A única verbalização inteligível de V era uma oração dita em iídiche compulsivamente, durante todo o tempo. Tomava-se difícil trabalhar com v já que não podíamos contar com sequer um minuto de silêncio ou de atenção por parte de V A oração era dita em voz alta e seguidamente, sem que v atendesse aos apelos pata parar de rezar e se voltar pata o trabalho com a fonoaudióloga. Decidi, então, aplicar-lhe a Calatonia, e com o auxílio de gostos, a conduzi para a cama, tirei seus sapatos e meias, ajudei-a a deitar-se, cobri seu corpo e comecei o relaxamento. v continuava a rezarem ritmo acelerado e voz alta. Algum tempo depois notei que V. desacelerava a fala e abaixava sua intensidade, tornando sua compulsiva oração mais e mais inaudível e lenta, até que fez silêncio e permaneceu quieta.

Terminado o relaxamento V. mostrava-se tranqüila e pode ser conduzida à mesa onde os trabalhos coma fonoaudióloga foram realizados com atenção e interesse.

Posteriormente, a família me informou que após algum tempo de terminada a sessão, V. tinha voltado a usar sua fala compulsiva. Na sessão seguinte, repetimos o procedimento e voltamos a aplicar a Calatonia. Foi observado efeito semelhante ao da sessão anterior e decidimos usar o procedimento em todas as sessões .

Pudemos, assim, realizar um trabalho de recuperação de sua linguagem que foi desenvolvendo e substituindo gradativamente seu comportamento de fala compulsiva e seu jargão.

*

J. também tinha sofrido um acidente vascular cerebral e tornara-se afásico. Sua compreensão da linguagem verbal estava prejudicada, bem como sua expressão verbal. J. conseguia dizer apenas palavras isoladas esporadicamente.

Após primeira sessão de Calatonia J. sentou-se na cama pensativo, depois olhou para a terapeuta, colocou a mão sobre o coração, e com olhos cheios d’água e uma expressão, facial e entonação de voz emocionadas disse: Bommm! Bommm!, prolongando o som final cheio de sentimento, que parecia gratidão, satisfação e compreensão do valor daquele trabalho para a sua recuperação.

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N. em adolescente, não ” gostava” de ficar parado e muito menos, parado, deitado e de olhos fechados. Recusava-se a fazer relaxamento, embora tivesse grande necessidade. Durante um certo tempo da terapia as propostas de trabalho corporal continham sempre movimentos, onde N. era ativo. Assim ele aceitava. Quando solicitado a verbalizar suas observações á respeito do trabalho corporal realizado, N. dizia sempre que nada observava e que não gostava “disso de observar”. Seus comentários eram no máximo: ” – Ah! Isis, foi bom eu não sei dizer o que senti!”

Um dia, durante uma sessão, arrisquei a sugestão de fazer Calatonia. Surpreendentemente N. aceitou a sugestão. Ficou deitado em decúbito dorsal, olhos fechados, durante todo o trabalho. Não quis comentar suas observações e disse apenas: -Foi bom.

Na sessão seguinte N. falou: -“Faz aquele do pé” A sugestão foi aceita e N. agora faz esta solicitação com freqüência e começa a se abrir para verbalizar suas percepções.

Durante um curso sobre trabalho corporal que ministrei em Viena, Áustria, para grupos de fonoaudiólogas, fizemos com todo o grupo diferentes trabalhos corporais e enfie eles a Calatonia.

Após um período de trabalho, sentamos para os comentários e discussões e uma das alunas falou: – “estou me sentindo diferente. Antes eu me sentia como uma pessoa assim” e acrescentou um gesto no qual os dedos das mãos se juntam sobre a cabeça e as palmas se separaram formando uma pirâmide com a base sobre a cabeça e a ponta fechada para o alto. E continuou: – ” Agora estou me sentindo assim”. E inverteu a pirâmide, deixando a ponta virada para a cabeça e a base aberta para o alto.

Todo o grupo entendeu o significado da simbologia usada e acrescentou suas observações que falavam de crescimento, de ligação com “algo” espiritual, de abertura, de equilíbrio, de contato com o subjetivo e da nova experiência em lidar com estímulos sutis. Uma delas trouxe uma preocupação dizendo: “- Eu posso entender este processo e o valor disso tudo para a nossa terapia, mas como posso explicar a meu cliente estas reações? você não acha que ele pode ficar pensando que isso é coisa de magia”? A discussão foi aberta para o grupo, que trouxe opiniões, temores de não serem consideradas tão cientificas e também impressões positivas, de compreensão das reações apresentadas.

Comentei que também aqui no Brasil havia esta preocupação por parte de alguns terapeutas, mas que estas manifestações poderiam ser lidadas de forma científica, coerente com nossa formação profissional e humana. Eram formas humanistas sutis, de trabalhar, que lidavam com conteúdos subjetivos e seguiam os princípios do paradigma das ciências Humanas, emergente neste final de século. Comentei ainda a importância de sabermos acolher as reações, os sentimentos do paciente deixando-o livre para expressar qualquer conteúdo que surja e ajudando-o a ampliar seu nível de consciência.

*

P. verbalizou uma vez, após a aplicação de Calatonia: -“Eu não sabia quando eu terminava nem quando você começava. Nossas energias se misturavam como se uma fosse o prolongamento da outra”.

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Uma vez, nos Estados Unidos propus-me a aplicar a Calatonia num professor da Universidade, psicólogo, Junguiano, mas que não conhecia a técnica de relaxamento apresentada. Após o relaxamento ele sentou na cama, me olhou e disse: “Are you a witch?” – “Você é uma bruxa”? e começou a me falar de suas ricas percepções.

*

T. era gago, pedreiro de profissão. Pedia que eu lhe fizesse relaxamento e em suas observações, dizia por exemplo: “eu agora estou me sentindo ‘no prumo’.”

*

Em minha última visita a Viena fui convidada a visitar uma médica ortopedista que tinha no computador do hospital em que trabalhava, um programa de feedback, dito excelente para relaxamento. Senti curiosidade em experimentar.

Fui muito bem atendida pela médica que fez em mim um de seus primeiros atendimentos com o programa. Ela me perguntou se eu tinha no corpo algum músculo que eu considerava tenso. Falei sobre um grupo muscular na área cervical (músculo, trapézio, elevador da escápula entre outros), especialmente doloridos e inflamados, devido a meu esforço em cortejar mala pesada durante a viagem.

Ela colocou uns eletrodos sobre os músculos referidos, e ligou o programa, que mostrava um circulo laranja claro grande e um outro circulo laranja escuro no centro deste. Ela me pediu para tentar relaxar a musculatura cervical atingida e explicou que na medida em que eu conseguisse relaxar, o circulo laranja escuro que estava no centro, se ampliaria, tomando gradativamente o lugar do circulo laranja claro. Se eu voltasse a tensionar, o círculo laranja escuro diminuiria novamente de tamanho.

Eu deveria tentar ampliar ao máximo o circulo laranja escuro e ver até onde eu conseguiria, sendo que o tônus ideal seria atingido quando o circulo escuro tomasse totalmente o lugar do circulo claro. Comecei concentradamente minha tentativa de relaxar e o círculo laranja escuro começou a crescer, indicando que o músculo estava se distendendo e relaxando.

Em um determinado ponto senti dor e, nesse momento, o círculo se reduziu rapidamente. Comecei novamente a tentar relaxar, mas toda vez que eu distendia o músculo, chegava no ponto da dor e o circulo se reduzia. A médica, então, propôs que eu tomasse, diretamente nos músculos atingidos, uma injeção analgésica, explicando que com a dor eu não conseguiria relaxar.

Pedi, no entanto, para antes, fazer uma experiência diferente. Expliquei que minha amiga que me acompanhava tinha aprendido, no curso que ministrei, uns toques sutis, de autoria do Dr. Pethö Sándor e também, o que ele chamou de “toques sem toque”, tendo todos o objetivo de trabalhar o equilíbrio fisio-psíquico.

Eu pediria para, enquanto eu estava diante do computador, com os eletrodos colocados sobre a musculatura cervical referida, minha amiga executasse alguns toques e toques sem toque nesta musculatura e em outros pontos específicos do corpo. Eu gostaria de observar como o circulo laranja escuro se comportaria sem que eu interferisse mentalmente provocando o relaxamento.

Fiquei passiva, tentando deixar acontecer, mas observava o círculo. Após algum tempo de toque (alguns segundos), o círculo começou gradativamente a crescer, superando o ponto de dor anteriormente atingido. Ele não chegou a cobrir totalmente o circulo laranja claro e reconhecemos que precisaríamos de mais outras sessões para que aqueles músculos machucados e cansados atingissem um suposto equilíbrio. Comentei com a médica que aquela máquina era muito interessante para comprovar o nosso trabalho, mas que ela não poderia nos substituir satisfatoriamente. Creio que ambas nos enriquecemos com a experiência e eu lhe fiquei muito grata.

*

B. após uma sessão de relaxamento, foi solicitada a executar movimentos com os pés, mãos, cabeça e respiração e, em seguida, a abrir os olhos e levantar. Quando tentou abrir os olhos B. percebeu que não conseguiria porque os tinha soltado muito. Seus músculos não obedeciam comando. O terapeuta estava do seu lado e lhe solicitou, tranqüilamente, que continuasse a fazer os movimentos e depois fechasse e abrisse os olhos vigorosamente e em seguida levantasse. B. podia mexer todo o corpo, menos os olhos e por isso não os abria. só depois de muitas tentativas e de movimentos mais vigorosos com o resto do corpo foi possível para B. abrir os olhos. Ela estava tranqüila, confiava no terapeuta, na técnica de relaxamento recebida e entendeu a mensagem dada pelo corpo naquela ocasião.

*

R. experimentava, durante uma certa época, que ao fazer relaxamento, todo o seu corpo se endurecia. Os músculos gradativamente iam ficando rígidos e se endureciam até se tornar insuportável aquele enrijecimento e a ausência de respiração. A musculatura então se soltava por a1gum tempo, e R. voltava a respirar em ritmo normal. Assim R. ficava durante toda a aplicação da técnica e terminava cansada. Após algum tempo, no entanto, observava alívio, soltura e bem-estar. Este processo durou algum tempo durante a terapia de R. e depois as manifestações se modificaram.

*

Apenas através da experiência vivida é possível entender o que é relaxamento, sua extensão e profundidade em benefícios que ele traz ao corpo e ao espirito. Com a vivência continuada de relaxamento o corpo torna-se sensível, aberto às percepções mais sutis ampliando assim seu nível de consciência e atingindo gradativamente o equilíbrio fisio-psíquico.

“O toque e três histórias” – Maria Amélia Pereira

Quando compreendemos o corpo como um sutil instrumento musical com múltiplas cordas, ele poderá evocar em nós uma escala tão ampla de experiências e vivências que estão bem acima das até então registradas e escritas.”

(Ensinamentos Antigos)

No convívio diário com um grupo de crianças entre dois anos e meio a sete anos, que passam as manhãs brincando num espaço da Natureza, fomos constatando a existência de um currículo interno expresso por cada criança que neste lugar tem a oportunidade de vivenciar seu tempo, seu espaço, afirmando e confirmando a existência de uma cultura que lhe é própria: o “SER CRIANÇA”.

Olhando-as, escutando-as, acompanhando-as em suas brincadeiras poderíamos dizer que a criança brinca porque se desenvolve e se desenvolve porque Brinca.

É o “Brincar”, sem dúvida um dos processos de conhecimento, o mais eficaz deste período de desenvolvimento.

O impacto do que há aproximadamente quatorze anos vimos presenciando no trabalho desenvolvido com as crianças pela Casa Redonda nos levou ao registro e documentação de gestos e falas do universo da criança. Esse acervo se constitui hoje numa fonte de infinitas possibilidades; através dele poderemos ser tocados por imagens que nos conduzirão a uma leitura mais profunda sobre o “SER CRIANÇA”, com conseqüente revisão de nossa prática educacional e/ou terapêutica.

Quando Mário de Andrade afirma que “o brinquedo socializa mais do que uma sessão solene e que na liberdade do brinquedo se determinam inconscientemente muitas características de uma raça…”, eis a pura verdade! E completa com: ” Poder-se-ia escrever um livro sobre a Psicologia das raças estudando-lhes unicamente os brinquedos nacionais.”

Isto, porque ao Brincar, a criança vive experiências subjetivas que se encontram em níveis muito profundos dissolvendo as divisões entre o que está dentro e o que está fora comunicando a experiência do SER.

William Blake nos seus “Cantos de Inocência” apresenta a Infância como o “espontâneo vivo, a pura essência do espírito da vida”. O poeta do século da Revolução Francesa identifica “a infância não como um estado de ignorância e inexperiência mas como um estado de SER, o tempo da convivência e comunhão, onde tudo está em comunicação: o sol, a lua, o dia, a noite, os sonhos, os anjos…

A criança vive aceitando-os como “reais”. Este mesmo pintor e poeta pede nos seus “Cantos”, “para que não se abafe a inocência infantil e que não se permita que a atitude racional que tiraniza o homem, atentando contra a precisa e concreta realidade do espírito, impeça aos olhos alcançar aquilo que vai além do mundo das aparências.”

Sabemos que quando a criança Brinca ela cria um TEMPO e ESPAÇO próprios e experimentando a inesperada aventura de um impulso interno, ela o representa em ATO. Nesse exato momento, sua imaginação abre possibilidades infinitas a coloca em um estado de contínuo processo de transformação.

Ao experimentar-se com o meio ambiente a criança chega a níveis cada vez mais complexos de combinação. A atitude exploratória exercitada através das brincadeiras possibilita a organização de padrões perceptivos e conceituais que as crianças usam com a maior destreza ao interagir com seu meio. E é no exercício do corpo em movimento que o brincar rompe com as limitações desse mesmo corpo, numa aliança com a imaginação, permitindo o intercâmbio livre entre o sujeito e o objeto. Dentro dessa verdadeira dança, o Brincar se afirma como uma conduta pensante, produto de um complexo comportamento que tem origem no corpo.

Foi justamente compreendendo essa estreita e significante relação entre a linguagem do Brincar e do corpo, expressa na criança de uma forma única e unida que semeamos os primeiros “contatos” com os toques sutis aprendidos com o Professor Pethö Sándor, no Curso de Cinesiologia do Instituto Sedes Sapientiae.

Entendendo o “corpo” como o veículo sagrado, o receptáculo da vida e respeitando o mistério que ele abriga, nos colocamos a serviço de um caminho de contato com as crianças deixando que elas nos fossem dando as direções por onde nossas mãos devem tocá-las.

Em meio à atmosfera das brincadeiras o trabalho corporal foi surgindo para surpresa nossa, ocupando a cada dia um espaço especial dentro das nossas atividades diárias.

O modo rápido e contagiante de como as crianças assimilavam este tipo de abordagem corporal nos afirmou a necessidade e a receptividade do corpo em ser acolhido com TEMPO, RESPEITO e SUAVIDADE. A fome de um “con-tato” sutil cem o corpo se mostrou presente na medida em que, ao tocarmos uma criança, várias delas se aproximavam e pediam: “Agora eu”; “Depois sou eu”; “Quero mais”; De novo” e ali ficavam em silêncio, aguardando a sua vez.

Uma esteira sobre o gramado, uma sombra de árvore, a quietude da Natureza e o som de alguns pássaros cantando, juntavam-se àquela entrega mútua da criança e do adulto ao partilharem daquele momento de troca serena e profunda.

Foi, assim, em meio à atmosfera das brincadeira, que o trabalho corporal foi ocupando seu espaço.

Menino ou menina, do menor ao maior se alternavam nos pedidos de Massagem, incorporando-a como mais uma das possíveis brincadeiras do seu repertório.

Quando me encontrava com um número de três a quatro crianças à espera, pedia a uma outra criança que me ajudasse transferindo para ela o movimento de tocar o companheiro. Mais uma vez fui surpreendida pela prontidão com que das respondiam ao chamado, tanto a que ia receber como a que ia desenvolver o toque.

O fato de já haver experienciado no próprio corpo aquele tipo de trabalho e a atitude de “olhar” o companheiro recebendo o toque enquanto esperava a sua vez por certo propiciaram uma preparação especial, tal era a prontidão das suas mãos, o “gesto pronto” para desenvolver a massagem. Gesto este que se estendeu para dentro de suas famílias o que veio ocasionar o pedido de várias mães para o aprendizado desses toques. Há seis anos mantemos um curso aberto aos pais e mães de nossas crianças.

O significado positivo desse trabalho sobre as crianças é manifestado de várias maneiras. Escolhemos três histórias que trazem dentro delas momentos que espelham o alcance do trabalho com o corpo.

Um Toque – Uma história

Sobre a esteira deitado, um menino de quatro anos me aguardava.

Iniciamos o toque com rotações nas pequenas articulações dos dedos dos pés acompanhando o ritmo de sua respiração.

Ele balançava a cabeça de um lado para o outro, coçava os olhos, ora estirava a perna, ora a encolhia, até que aos poucos leves bocejos começaram a surgir. Seu olhar se tornou distante e seu corpo parecia agora colado ao chão, tal era sua soltura muscular. Um silêncio nos rodeou.

A certa altura ele falou:- Sabe que eu vou ser maior do que o meu pai? Eu vou ser do tamanho desta árvore.” E apontava um enorme pinheiro que se encontrava atrás de mim.

“Nossa! Disse-lhe. ” Você vai ser desse tamanho?”

“Sim”, afirmou ele, “vou ser desse tamanhão!” Novo silêncio.

Eu continuava desenvolvendo o toque nos seus pés.

Ele voltou a falar: – “Sabe, eu não vou ser até lá em cima da árvore não. Eu só vou crescer até ali.” E apontava para uma altura que representava a metade do pinheiro.

Ficamos em silêncio novamente.

Passado algum tempo, já quase terminando o toque ele voltou a falar:

– “Você sabe que todo mundo pensa que Deus é maior que tudo? Mas não é não!” Ele mesmo afirmou.

Brotou em mim uma pergunta e a faço:

– “Quem então é maior que Deus?”

– ” A vida, a vida é maior que Deus. A vida é tudo. Tudo é vida. Eu acho que a vida é que é Deus!”

Novo silêncio entre nós. Dessa vez tão intenso como suas palavras. Termino de tocar os seus pés, ele calmamente se levanta e segue seu Caminho em direção a uma outra brincadeira.

Outro toque – Outra história

“Depois sou eu”, dizia ela nos seus seis anos de idade, aproximando-se do local onde me encontrava iniciando o trabalho corporal com uma criança.

Sentou-se próxima à esteira, muito calma, aguardando a sua vez.

Ao chamado dos amigos para brincar, ela muito afirmativa respondeu: “Agora não, depois eu vou”, e ficou em silêncio observando o que eu fazia.

Algo ali estava acontecendo de muito significativo, uma vez que sua paciência esperando o momento em que pudesse atendê-la era incomum.

O tempo que ela permaneceu olhando as minhas mãos tocando outra criança certamente agia sobre ela como uma preparação, uma receptividade, uma abertura para o trabalho corporal que em seguida iríamos fazer.

Logo após a saída da outra criança, ela rapidamente se ajeitou na esteira e curiosamente fechou os olhos o que não é um gesto comum nas crianças dessa idade. Houve momentos em que cheguei a pensar que ela havia adormecido, tal era a sua quietude.

Ao terminar o toque que ela sempre solicitava, o “sopro na coluna” e o “sopro ao redor do umbigo”, ela abriu os olhos devagarinho como se estivesse chegando de muito longe, esboçou um sorriso misterioso e se espreguiçou parecendo uma criança pequena quando está acordando em paz.

“Você esta com sono?”, perguntei.

Ela sempre dizia: “Não, agora vou brincar!”

Porém, neste dia, seu corpo parecia não querer sair da esteira. Virava, revirava, até que conseguiu se sentar e olhando para mim, falou:

– “Você sabia que eu tinha um medo grandão?”

– “Que medo?”, perguntei.

– Quando eu estava na barriga da minha mãe, eu pensava que ia morrer lá dentro.”

– “Como você sentia isso?”

– “Tinha uma coisa me apertando, me esticando, parecia que eu estava secando. Eu ia ficar sequinha e ia morrer.

Fiquei em silêncio. Ela veio para o meu colo.

– “Ainda bem que eu nasci logo e não morri. A minha mãe foi quem morreu,”

Abracei-a.

– “Que bom que você está viva menina! E aquele medo grandão, por onde anda agora?”

– “Agora não tenho medo. Eu só tinha medo na barriga da minha mãe. Eu não queria morrer na barriga da minha mãe. Ia ser chato. Acho que minha mãe sabia que eu não queria morrer junto com ela. Eu queria viver. Agora eu tenho duas mães, uma que mora no céu e uma que mora na terra.”

Ela se levantou do meu colo e foi chamar as outras crianças para brincar de “Morto/Vivo”, brincadeira esta que há duas semanas ela pedia para brincar quase que diariamente.

Mais um toque – Outra história

Certa manhã uma menina de quatro anos se aproximou e disse:

– “Você faz uma massagem em mim? Quero tirar uma barata que está aqui dentro”, e apontava a região do coração com sua mão.

Esta criança desde que chegara de sua casa naquela manhã se mostrava inquieta entrando em atrito a todo instante com as outras crianças. Tudo que se propunha a fazer não lhe agradava, interrompendo pelo meio, o que não costumava ser uma atitude comum nela.

Coincidia que, naquele dia completava uma semana de ausência dos pais, que estavam viajando, tendo ela e os irmãos ficado sob a responsabilidade de empregados de confiança do casal.

Ouvi aquele pedido e surpresa pelo significado que ela estava dando á massagem voltei a perguntar:

– “Por que você quer fazer massagem agora?”

– Eu quero tirar a barata que está dentro de mim.”

Disse-lhe para pegar a esteira, colocá-la em um lugar sombreado no jardim, como comumente fazíamos e que aguardasse um pouco que logo eu estaria lá.

Concluí o trabalho que fazia de argila com uma outra criança e alguns minutos depois fui procurá-la, certa de que a essa altura ela já havia esquecido da massagem, tendo se ligado a alguma outra brincadeira pelo caminho. ‘

Qual não foi minha surpresa ao encontrá-la deitada calmamente na esteira à sombra de uma árvore, aguardando a minha chegada.

Sentei-me como de costume, iniciei o trabalho massageando seus pés. Perguntei-lhe:

-“A barata ainda está dentro de você?”

-“Está aqui dentro de mim”, disse ela com determinação, mostrando o coração.

-“O que será que ela está fazendo aí dentro?”

-“Está fazendo cócegas ruim, que eu não gosto. E todo mundo está brigando comigo hoje.”

-“Então, vamos lá”, disse eu, “vamos ajudar esta barata a sair daí de dentro.”

Ela disse: “Faça aqui”, e mostrava a barriga.

Fiz o primeiro toque, deslizando a mão suavemente em pequenas rotações no sentido horário ao redor do umbigo, ampliando a pressão e extensão do toque na parte superior, atingindo a região do diafragma.

Ao terminar este movimento, ela logo se virou de costas e disse: “Agora nas costas”.

Iniciei o trabalho com sopro sobre a coluna, subindo devagarinho sobre cada vértebra. No exato momento em que atingia a sétima cervical, ela se virou e disse:

– “Chega, já saiu, a barata já saiu.”

Levantou-se no prumo, leve como um passarinho e foi brincar com os amigos, passando o resto da manhã em paz.

Por mais uma semana durante o tempo de ausência dos pais, todas as manhãs ela chegava pedindo massagem.

Esta criança mostrou que seu corpo, através dos toques, registrou sensações de harmonia de ordenamento, uma vez que partiu dela a procura da massagem como um recurso para limpar um incômodo corporal produzido por um sentimento de insegurança ou mesmo “saudade”, causado pela ausência dos pais e configurado no corpo pela estranha presença de uma barata no coração.

A cada experiência com os toques sutis aprendidos com o Professor Sándor, aplicado nas crianças como “novas brincadeiras”, como me dizia ele, era concreto e visível o recondicionamento imediato do corpo físico através da ampliação da respiração, da harmonização do ritmo respiratório, da soltura muscular que cooperam para a criação de espaços novos que vão sendo abertos internamente onde, por certo, se alojam as indagações mais profundas que espontaneamente se manifestam ao receberem através do corpo, um acolhimento no TEMPO e no ESPAÇO.

Histórias como estas eu poderia continuar narrando por mais algumas páginas, confirmando a utilização dos Toques de Integração Físico Psíquica, como um trabalho que poderá vir a ser incorporado dentro das atividades de creches, escolas, hospitais e principalmente dentro do cotidiano da própria família desde que a natureza externa e interna sejam presenças reconhecidas e respeitadas.

Ao contemplarem as fotografias, as imagens sinalizarão na essência o significado dos toques. Estas fotos pertencem ao nosso acervo sobre o SER CRIANÇA e agradecemos a todas elas que continuam a afirmar com determinação e resistência o SIM Á VIDA, nos ensinando a cada dia novas possibilidades da expressão humana.

CASA REDONDA – CENTRO DE ESTUDOS (1983 – 1997)

“Sincronicidade e o trabalho com Calatonia e toques” – Luiz Hildebrando

Reflexão apresentada no Encontro de Vinhedo (SP) junho de 1994.

Eu acompanhei um rapaz de 21 anos durante o processo de uma doença. No período final da doença ele ficou hospitalizado por 45 dias, e no hospital, o mais fundamental da nossa cantata foram as sessões de Calatonia, que eram, segundo o seu relato e conforme eu podia observar, de grande importância para ele.

Antes da hospitalização, uma colega atendeu a família, sendo que ele se envolveu bastante com as sessões que foram muito úteis para ele e para toda a família. Porém, essa ajuda deixou de ter eficácia por ocasião de uma interpretação que a terapeuta fez a respeito da negação dele em abordar o assunto da gravidade da sua doença. Ele ficou indignado, veio a sua terapia se queixando muito dela, respirou fundo para não se deprimir demasiadamente, e continuou seu trabalho. Isso me fez pensar bastante, pois realmente, para nós, psicólogos, usar essa defesa, a negação, é em geral visto como alguma coisa inadequada.

De fato, no inicio do mês de dezembro, dez dias antes de sua morte, ele fazia planos para passar o final do ano com a família e a namorada em Penedo, sendo, muito evidente que isso não seria possível. Só que ao mesmo tempo, eu via o trabalho que ele fazia em termos de harmonizar as relações com o irmão, com a namorada, de entender e perdoar ao pai, de falar com a mãe muitas coisas que não haviam sido antes faladas, conversar muito sobre religião com uma tia muito católica, um tipo de conversa que antes não tinha muita importância para de ele.

Apenas uma vez, numa conversa em que ele se colocou a hipótese de não melhorar, eu perguntei a ele o que ele pensava a respeito e ele se referiu à possibilidade de morrer, mas disse que não queria ficar pensando nisso, pois não agüentaria. Ele se preparou para enfrentar a morte sem falar explicitamente dela. Parecia, no caso dele, que se negar a falar sobre a morte era fundamental para manter-se com forças suficientes para realizar um difícil trabalho. Eu só o vi irritado uma vez nesse período mais difícil da doença; era uma pessoa que pedia as ajudas possíveis e necessárias e tinha para com as pessoas que o ajudavam um sentimento de gratidão muito visível. E era por isso um desses doentes que todos gostam.

Com a sabedoria de quem está lidando com seriedade e dignidade com o final de sua vida, ele me ensinou muitas coisas. Eu tenho também um sentimento de gratidão por ele.

Na última vez que eu o vi, precisei esperar muito tempo até que ele pudesse se livrar de dores muito intensas com o uso de bastante morfina. Quando ele estava um pouco melhor, pediu para que eu fizesse a Calatonia, e depois que acabou, esperei muito tempo até que ele acordasse e ele me disse que foi muito bom, que ele se sentia muito aliviado, sentia ter descarregado, e eu brinquei, “mas não foi só a Calatonia, tem também o efeito de uma boa dose de morfina”.

Ele me olhou muito sério e falou: “não é alivio da morfina que eu estou falando, é uma sensação de descarregar aflições que é completamente diferente”. Na verdade, acho que eu estava sem jeito porque eu tinha um desejo de fazer muito mais do que podia, e ele me chamou a atenção para o fato de que aquilo que eu podia era o essencial, era o que tinha importância. Eu só posso dizer que esse tipo de sabedoria não é típico de um paciente que usa a negação maníaca como defesa, já que essa defesa nos afasta da realidade, nos torna cegos.

A idéia que ficou em mim foi que ele usou a negação de uma forma que, ao invés de se ligar na idéia da morte, ele saiu em busca daquilo que não morre, daquilo que é essencial, daquilo que não é efêmero. Tenho convicção que a Calatonia o ajudou nisso, mas coma é que isso aconteceu?

O trabalho com Calatonia formulado pelo Sándor, além de buscar uma descontração ao nível muscular, nos permite entrar em contato com estados alteradas de consciência, com sensações e percepções, com imagens e emoções, nos permite entrar em contato com uma dimensão da realidade que está além da esfera cotidiana.

A característica marcante da Calatonia é a suavidade.

São toques suaves “como se segurássemos bolhas de sabão”, nos dedos dos pés ou das mãos, na sola doe pés, nos calcanhares, na “batata” da perna, na nuca, que, conforme relato do Sándor no livro de relaxamento a respeito da época em que criava a Calatonia, num hospital da Cruz Vermelha durante a Segunda guerra, ela “produzia descontração muscular, comutações vasomotoras e recondicionamento do ânimo dos operados numa escala pouco esperada.”(1)

É muito significativo o fato de o verbo grego “Khalaó” indicar “relaxação”, mas também “alimentação”, “afastar-se do estado de fúria, violência”, “abrir uma porta”, “desatar as amarras de um odre”, “deixar ir”, “perdoar aos pais”, “retirar todos os véus dos olhos”, etc.

Então, a Calatonia nos ajuda a entrar em contato com o inconsciente, e quando pedimos para o paciente para relatar as observações, após uma sessão de relaxamento, nós o estamos estimulando a abrir canais de ligação com a consciência.

A idéia do inconsciente é fundamental na psicologia Junguiana. Até mesmo a existência do inconsciente já foi muitas vezes questionada até por que ele se define a partir de uma negativa – aquilo que não é consciente. Porém, por um lado, sem a postulação do inconsciente, a maior parte dos fenômenos da consciência não seriam inteligíveis. Além disso, o inconsciente tem o mesmo direito de existência que tem a luz não visível, já que o fato de que conscientemente conhecemos apenas uma pequena faixa do espectro luminoso não é argumento para se afirmar que não existem aqueles comprimentos de onda que não vemos.

O incosnciente tem também o mesmo direito de existência que as partículas subatômicas. Nós também não vemos um elétron, só as marcas que ele deixa, e da mesma forma, inferimos os conteúdos do inconsciente através de suas marcas deixadas nos sonhos e fantasias.

Para Jung, “a psique inconsciente é anterior à psique consciente”.

É mais velha e incomparavelmente maior. Da mesma forma que a psique da criança é inconsciente e só gradualmente desenvolve-se uma condição consciente, coisas que não conhecemos hoje, que só conheceremos no futuro, já existem no inconsciente”(2).

Esta afirmação contém em si a grande diferença entre as idéias de Jung e as de Freud sobre o inconsciente: a da função prospectiva dos sonhos e do Inconsciente. Ou seja, da o inconsciente não simplesmente reage às atitudes conscientes, apesar de que isso também acontece – a função de compensação do inconsciente – mas ele nos organiza e nos guia.

Por exemplo: uma mulher de aproximadamente 50 anos, agressiva, inteligente, médica bem sucedida, pela primeira vez faz uma terapia. Tem um sonho inicial em que ela está em um caminho, tem um longo percurso já caminhado, e encontra uma senhora mais velha, toda arredondada, com anquinhas, gordinha. Uma velha simpática. Continuam juntas a caminhada, e há um longo caminho pela frente.

A sonhadora é uma mulher muito preocupada com sua aparência física, com manter-se magra, jovem, com a pele esticada. A terapeuta fala que esta mulher poderia ser ela, a sonhadora, no sentido da velhice que estava sendo reprimida, não vivida, encoberta.

Eu penso que também poderia ser um sonho anunciando a velhice: a menopausa que já estava presente arredonda, muda a forma do corpo; Então, olhando de maneira prospectiva o sonho, um sonho inicial, ele poderia estar anunciando o que ela foi fazer lá, na terapia, mostrando o que significaria esse caminho para ela: um envelhecer arredondado, aceitar isso.

Ela achou aquilo demais para ela, e não continuou o trabalho. Voltou muitos anos depois, tendo sofrido bastante pela maneira pontiaguda de ser.

Então, poderíamos olhar um sonho assim e explicá-lo através do conteúdo reprimido ou não aceito, mas isso não esgotaria o assunto, pois podemos nos perguntar para onde o sonho está apontando.

Um outro sonho é o de uma paciente que procurou terapia depois que teve um câncer na seio com metástases no pulmão e no fígado, já tenda iniciado uma quimioterapia. Na primeira sessão, trouxe um sonho no qual ela estava fazendo uma grande faxina em sua casa com ajuda de uma amiga, sentindo-se bem por fazer aquilo e por ser ajudada. Eu tive a sensação que era um sonho que trazia um bom prognostico para a terapia, mesmo que eu não ousasse supor o mesmo a respeito da

Doença, mas parecia que a faxina era importante e traria alívio. Ficou inicialmente apenas três meses em terapia, fazendo ao todo poucas sessões pois muitas vezes não tinha condições de vir por causa das efeitos da medicação. Foram sessões muito intensas que tiveram um caráter bastante claro de limpeza em termos emocionais principalmente na sua ligação uma única filha adolescente. Teve de fato nesse período muita proximidade e ajuda desta amiga, e teve uma melhora que não era esperada pelos médicos, pois desapareceram os nódulos no fígado, e ela pode fazer uma operação para retirada do tumor no pulmão.

São exemplos que nos sugerem que as coisas acontecem antes no inconsciente. Nas palavras de Jung “Somos um produto, somos antecipados, nós somos pensados pela nossa psique antes que saibamos disso, nós éramos e não sabíamos, isto era por assim dizer, sabido, mas temos que deixar aberta a questão de quem é que o sabia” (3). Ou seja, “o inconsciente situa- se em um plano subjacente ao plano visível, e de algum modo o sustenta”.(4)

Então se, subjacente a este plano, um outro nível o sustenta, o antecipa, podemos pensar que lá existe aquilo que é fundamental.

Nós, psicólogos, nos acostumamos a dizer coisas como que o tempo no inconsciente e nos sonhos é relativo, que as leis do inconsciente são diferentes. De fato, inferimos empiricamente através de observações de observações de sonhos que parece existir diversas camadas e nas camadas mais profundas há uma relativização de tempo e espaço, e mesmo do que é objetivo e o que é subjetivo.

O mundo objetivo e o mundo subjetivo normalmente são vistos como independentes um do outro, sendo que a realidade objetiva com uma importância maior do que meras idéias ou fantasias, tendo por isso o direito à chamada existência real. O tempo é sentido como contínuo e regular, avançando linearmente numa marcha e direção constantes. Assim sendo, a afirmação de que existe um plano no qual o objetivo o subjetivo se encontram e que o fluir do tempo se relativiza, subverte esta visão tradicional da realidade. Estamos tão acostumados com a existência do inconsciente que ele acaba fazendo parte da nossa vida sem que pensemos muito nele, sem que nos perguntemos qual é a conseqüência dessas coisas que afirmamos, ou seja, pensamos no inconsciente como se ele não fizesse parte da realidade.

De fato, sempre se pensou numa realidade objetiva independente do observador, independente da psique; mas então, a que realidade pertenceria esse observador?

Se são dois mundos paralelos, duas realidades em paralelo, a psique e a realidade objetiva, desligados um do outro, ou seja, se o que acontece no inconsciente não interfere na realidade objetiva e vice-versa, se um mundo apenas observa o outro, então nos é permitido afirmar que no inconsciente as leis são diferentes. Mas se percebemos alguma relação entre eles fica tudo mais complicado e em primeiro lugar o próprio conceito de realidade tem que ser alterado.

Para Jung a psique pertence à natureza e ao mundo real. No prólogo do seu livro de memórias, Jung descreve o que é o inconsciente para ele: ” A lembrança dos fatos exteriores de minha vida, em sua maior parte esfumou-se em meu espírito ou então desapareceu. Mas os encontros com a outra realidade, o embate com o inconsciente, se impregnaram em mim de maneira indelével em minha memória”.

“Tudo o que repousa no inconsciente aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade”.(5)

Em seguida: “A vida sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma; a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura só um verão, depois fenece… Aparição efêmera. Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de total futilidade; mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudança”.

A verdadeira realidade para Jung é a realidade interior. Ele fala de “meros fatos” ao invés de “meras fantasias”, como nos acostumamos a ouvir.

Agora, como é que se apresenta essa tal ligação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo? O fenômeno que Jung chamou de sincronicidade aponta nessa direção. Ele chamou de sincronicidade certas “coincidências” que ele observou entre um acontecimento no mundo objetivo e um acontecimento psíquico, ligados por terem uma relação de significado, não necessariamente simultâneas mas próximos no tempo, e não ligados por uma relação causal que pudesse ser observada. Nós não esbarramos com acontecimentos deste tipo todos os dias talvez porque normalmente somos incapazes de imaginar ou de admitir acontecimentos inexplicáveis, ou seja, que não tenham uma ligação causal.

Fui procurar no dicionário Aurélio a definição da palavra causa: “aquilo ou aquele que faz que uma coisa exista: não há efeito sem causa.” Isso é revelador de uma mentalidade, é um pensamento enraizado: se algo não foi causado por alguma causa não tem o direito de existir; não pertence à realidade. Seria o mesmo que dizer: “esses fenômenos de sincronicidade não existem”.

De qualquer forma, talvez cada um de nós possa lembrar algum acontecimento deste tipo que experimentou, já que normalmente ele provoca uma forte impressão. E também cada um de nós talvez possa se lembrar dos esforços que deve ter feito para procurar alguma explicação, para “entender” o que aconteceu, para descobrir uma causa.

Quando uma amiga precisou fazer uma operação delicada, no momento programado para a operação eu estava no meu consultório, com a informação que a operação duraria pelo menos umas cinco horas.

Eu estava muito aflito, e desmarquei as sessões e fiquei concentrado e desejando que tudo acontecesse da melhor forma possível. Exatamente às 10:15 h, uma hora e quinze minutos depois que deveria ter iniciado a operação, eu me vi desligado daquela preocupação, me senti tranqüilo e resolvi recomeçar a trabalhar, e tranqüilizei a secretária que também estava muito aflita, dizendo que agora estava tudo bem.

No final da tarde recebi a noticia que a operação tinha sido bem sucedida e que tinha durado muito menos do que se esperava, tendo acabado às 10:15 h! Fiquei bastante impressionado, pois eu não havia pensado: “agora já terminou a operação, já posso voltar a trabalhar”, eu simplesmente tive a certeza de que estava tudo bem.

Fui procurar o que Freud disse a respeito de coisas como essa, porque Freud era totalmente avesso a qualquer coisa que não tivesse a chamada explicação científica ou causal.

Num artigo chamado “Sonho e Ocultismo”(6), ele descreve um sonho supostamente telepático de um indivíduo que tinha uma filha que morava distante e que esperava um filha para meados de dezembro, e na noite de 16 para 17 de novembro sonha que sua segunda mulher, madrasta dessa filha, e da qual ele já se separara, teve filhos gêmeos. Recebeu depois, no dia l8 de novembro, a noticia telegráfica de que sua filha tivera gêmeos, aproximadamente a mesma hora em que ele sonhou.

Freud procura uma explicação, e supõe que as idéias latentes do indivíduo fossem as seguintes: “Hoje é o dia do parto, se é como eu penso minha filha se equivocou num mês ao calculá-lo. Seu aspecto, a última vez que a vi, demostrava a possibilidade de um duplo parto. Minha defunta mulher gostava muito de crianças. Como teria ficado feliz se tivesse tido filhos gêmeos Neste caso teriam sido suposições bem fundamentadas do indivíduo, e não uma mensagem telepática, o estímulo do sonho.” É uma quantidade tão complicada de suposições que a hipótese de telepatia parece até mais provável.

Na minha experiência descrita, poderíamos fazer um raciocínio semelhante, demonstrando assim a possibilidade da causalidade nos dois eventos, ficando somente, tanto neste caso como na minha experiência, faltando dizer algo a respeito da coincidência temporal, que em geral acabamos por deixar por conta do mero acaso, e foi o que Freud fez.

Nós sempre podemos procurar algum tipo de explicação estilo ‘o quê causou o quê’, mas às vezes parece um pouca forçado, como por exemplo: às vezes eu ouço alguém tentando “provar” que a astrologia é científica supondo misteriosas radiações dos planetas.

Parece-me mais provável que a explicação causal simplesmente não seja a única possível para uma dada situação, não esgotando as possibilidades dela, ou seja, mesmo que, no exemplo de Freud, as idéias latentes do sonhador fossem aquelas, não acho que dizer simplesmente que ele sonhou aquilo porque havia pensado antes aquelas idéias esgota aquele acontecimento, pois ele me parece mais complexo; isso é apenas uma abordagem, é apenas um dos lados.

Acho que os dois pontos de vista não precisam estar necessariamente em conflito, podendo ser simplesmente duas maneiras diferentes de se olhar o mesmo fenômeno. As vezes essa idéia me fica mais clara ao fazer uma analogia com os fenômenos da física subatômica. Vou ler uma citação do livro “O Tao da Física”(7): ” As unidades subatômicas da matéria são entidades extremamente abstratas e dotadas de um aspecto dual. Dependendo da forma pela qual as abordam, aparecem às vezes como partículas, às vezes como ondas e essa natureza dual é igualmente exibida pela luz, que pode assumir a forma de ondas eletromagnéticas ou de partícula.”

E com relação aos fenômenos psicológicos, conforme o seu ponto de vista, dependendo da sua concepção do inconsciente, você vai ter uma consciência diferente a respeito de você mesmo ou da mundo. Ou ao contrário, conforme a sua consciência, você vai enxergar os fenômenos psíquicos de maneiras diferentes. Eu penso que não se trata do inconsciente ser isso ou aquilo, ele não é algo concreto que podemos revelar com precisão; ele também é uma entidade extremamente abstrata e dotada de um aspecto no mínimo dual, da mesma forma como o físico se referia às unidades subatômicas. Dependendo do meu olhar, eu vou ver coisas diferentes.

Há um antiga conto que diz o seguinte: havia uma cidade onde todas as pessoas eram cegas. Um dia surgiu um rei com seu exército. Ele usava um terrível animal, um elefante, para atacar e intensificar o temor do povo. Alguns cegos daquela população procuraram se aproximar do animal e se puseram a tateá-lo. Quando voltaram para a cidade, todos queriam saber a forma e o aspecto dele. O primeiro, que apalpara a orelha do elefante, informou: “é uma coisa grande, rugosa, larga e grossa como um tapete felpudo”. O outro, que apalpara a tromba, disse: “trata-se de um tubo reto e oco, terrível e destruidor”. O terceiro, que tocara as patas, declarou:” é algo poderoso e firme como uma pilastra”. (8)

Então, o fato é que a existência, mesmo que não seja rotineira, de antecipações (em sonhos) ou da telepatia – transmissão de informações através daquilo que chamamos inconsciente, e de uma maneira genérica, dos fenômenos de sincronicidade, faz supor a existência de um nível onde o exterior e o interior se encontram.

Há um físico inglês, David Bohm, professor de mecânica quântica, que viveu durante dez anos na Brasil na época da criação da USP. Estava ocupada com questões que envolviam as relações entre observador e observado quando sua mulher, também física, achou um livro sobre o assunto pensando tratar-se de um livro de física, e que era um livro de Krishnamurti, filósofo e espiritualista indiano. Ele procurou o Krishnamurti e ficaram amigos, sendo que existem alguns livros de conversas entre os dois.

A partir das questões colocadas a respeito da “natureza” da matéria, da luz e da própria realidade pela física quântica, e também dessas relações ou interferências do observador no fenômeno observado, David Bohm procura uma nova noção de realidade; que abarque também a consciência, e fala da ordem implícita. ou dobrada, onde espaço e tempo, não são os fatores dominantes que determinam, as relações de dependência ou independência de diversos elementos, e da qual deriva uma ordem explícita ou desdobrada, onde aparecem nossas noções ordinárias de espaço e tempo, e também de existência separada de partículas materiais, que seriam abstrações derivadas daquela ordem mais profunda.(9)

Jung se referia a uma realidade implícita, no livro Sincronicidade, onde ele diz: “um conteúdo (psíquico) percebido pelo observador pode ser representado, ao mesmo tempo, por um acontecimento exterior, sem nenhuma conexão causal. Daí se concluir ou que a psique não pode ser localizada espacialmente, ou que o espaço é psiquicamente relativo. O mesmo vale para a determinação temporal da psique ou a relatividade do tempo.” (10)

Essa dimensão da realidade, este nível do inconsciente é o nível Arquetípico segundo a linguagem Junguiana, é nível implícito segundo o físico David Bohm, é onde o espaço e o tempo são relativos, ou onde as ligações entre os fenômenos não são determinadas pelo espaço e pelo tempo. É onde a realidade subjetiva e objetiva se ligam, não por causa e efeito. E é esse ponto, na ligação entre os fatos, que nos aparecem como sincronicidade.

Ao nos ajudar á abrir canais de ligação, a Calatonia nos coloca em contato com esse nível onde esses fenômenos acontecem com freqüência maior do que aquela com que estamos acostumados.

Como eu posso afirmar que a Calatonia ajudou o meu cliente?

Só sei que Sincronicidade é ligação, e ao mesmo tempo significado.

Isso o teria ajudado a se ligar com algum sentido maior para o qual ele estava vivendo? Impossível saber, eu posso dizer o que já afirmei, que eu sentia que era muito importante.

Agora vejam, observo o seguinte em minha profissão: quando as pessoas que me procuram me trazem questões com as quais eu mesmo estou me defrontando naquele momento – como se aparecessem na hora certa – eu percebo uma ligação de sentido com o que está acontecendo comigo, ou seja uma ligação de sincronicidade. Nesse caso se estabelece uma ligação “via alma” entre eu e o meu cliente e entre eu e o meu trabalha. Passa a fazer sentido para mim o que faço: a sensação de não fútil, não fortuito, mas essencial.

E assim, não posso forçar uma relação de sentido, mas posso procurar abrir os canais para perceber o sentido, e isso a Calatonia me ajuda a fazer.

É por isso que Sándor nos orientava para que mantivéssemos na consciência a existência do chamado “terceiro ponto” enquanto estivéssemos fazendo a Calatonia. Porque o que acontece ali não é uma simples troca energética entre eu e o meu cliente, mas um contato de ambos com algo maior. E assim, a energia se encaminha para onde for adequado. Dessa maneira nós procuramos descobrir o sentido que já existe.

Michelangelo descreveu uma vez seu trabalho de escultor: “a forma já está na pedra, eu só tiro o excesso”.

Nós precisamos aprender a olhar.

Citações:

(1) Sándor, P., “Técnicas da Relaxamento”, Ed. Vetor.

(2) Jung, C.G.: “Psicologia Moderna”, Seminários, (tradução para uso em grupos de estudos) pág. 151.

(3) Idem, pág. 152.

(4) Campbell, “O Poder do Mito” (Os primeiros contadores de histórias, pág. 76).

(5) Jung, C.G.: “Memórias, Sonhos e Reflexões”.

(6) Freud, S.: “Novas contribuições à Psicanálise”.

(7) Capra, F.: “O Tao da Física”.

(8) Shah, I.: “História de Dervixes”, Ed. Nova Fronteira

(9) Bohm, D.: “Wholeness and the Implicate Order”.

(10) Jung, C.G: “Sincronicidade”, Ed. Vozes, parágrafo 936.

Texto de Maria Alice Cury

13/12/2006

Introdução

Este trabalho foi desenvolvido em ambulatório de convênio para pessoas idosas, às quais atendi durante dois anos.
A princi
pal técnica utilizada foi a Calatonia em diversas partes do corpo, bem como os toques sutis.
Observando-se mudanças significativas no comportamento desses indivíduos como maior independência, superação de seus medos, ansiedades, melhora nos relacionamentos com os demais e conseguindo organizar-se melhor tomando atitudes mais adequadas.

1 – Paciente de 76 anos com câncer generalizado, nos ossos – fase terminal. Queixa-se de dores pelo corpo e refere que foi ausente com sua família. Feito levantamento do que gostaria no momento para sua vida.
Descreve sua vida na fazenda em que viveu e hábitos típicos da região. Feitos trabalhos corporais – Calatonia nas diferentes áreas do corpo; Massagem Integrativa e conversas. O que diminuiu suas dores. Conseguimos orientar a família no sentido de se aproximar mais dele, apenas permanecendo perto ou tocando suas mãos. O filho que morou no exterior aproximou-se. A esposa proporcionou-lhe coisas que gostava: alimentos, fotos de família, músicas sertanejas. Desta maneira o paciente lidou melhor consigo até o final de seus dias.

2 – Paciente de 57 anos vem com a queixa de síndrome de Pânico, medos da morte, de sair à rua, de dirigir o carro, desmotivado e em depressão. Ao final de seis meses de trabalho o paciente refere diminuição dos medos, foi reduzida sua medicação, voltou a dirigir sozinho, suas consultas médicas diminuíram, sentia-se fortalecido, as dores pelo seu corpo desapareceram. E foi dada a ele a alta em terapia. Feito todas as técnicas corporais e toques.

3 – Paciente de 61 anos, em depressão e com problema de alcoolismo. E remissão. Paciente se mantém estável. Queixa-se de problemas físicos. Muito dependente dos filhos. Só fazia o que mandavam. Durante a terapia fez três cirurgias. O tratamento desenvolveu-se durante seis meses. Foram feitos muitos trabalhos na cabeça e as diferentes técnicas de relaxamento e toques (P.Sandor). Quase no término do tratamento observa-se que vem sozinha às sessões, bem cuidada, mudou o visual, deixou de beber e superou as cirurgias. Feitos vários trabalhos na cabeça, Jacobson e outras técnicas de relaxamento. Paciente está mais independente e faz tarefas de casa, cuida dos netos.

4 – Paciente de 76 anos, diagnosticada com Alzheimer, apresenta-se confusa, em depressão, devido a perda do companheiro, medos de ficar só em casa, de sair sozinha. Permaneceu um ano em terapia. Feitos relaxamentos, Calatonia, Schultz, toques, batidinhas pelo corpo, 8 na cabeça. Após este período a paciente começou a organizar-se, cuidar de si e da casa, passou a dormir sozinha sem empregada, a dirigir seu carro, a ir a shopping almoçar sozinha, a sair só ou com amigas em programas culturais como concertos, cinemas. Recuperou sua memória e apresentou bem estar físico.

5 – Paciente de 59 anos, em depressão, mora com filho e nora. Apresentou vários episódios de tentativas de suicídio (tiro no coração, jogou-se na frente de caminhão). Feito relaxamento e técnicas corporais várias partes do corpo e toques sutis. Após 8 meses foi morar só, pois o relacionamento com a nora era difícil. No início não preparava as refeições e não saia de casa. No decorrer do trabalho começou a preparar suas refeições, a sair para caminhadas, a se relacionar com amigas e então teve alta da terapia, após avaliação do trabalho e depois de se organizar melhor.

Conclusão

Após este trabalho de abordagem corporal, especialmente com as técnicas do Prof. Sandor, utilizadas semanalmente, notou-se melhora da condição física, do raciocínio e memória, na atenção e concentração, diminuição dos medicamentos e das consultas médicas.

“Trabalho corporal – Um breve relato de uma experiência na periferia de São Paulo” – Rita de Cássia Hetem Assaly

Nos últimos anos, muitos psicólogos têm ingressado em instituições de saúde. A maior parte das vezes, não encontram em seus locais de trabalho todas as condições estruturais ideais para o desenvolvimento dos atendimentos conforme os ditames acadêmicos e por vezes enfrentam também pouca compreensão do que seja seu trabalho. “Instalar” um Serviço de Psicologia num Posto de Saúde (ou Unidade de Saúde) da periferia de São Paulo acaba tendo um caráter pioneiro, com suas vantagens e desvantagens: de um lado, certa solidão e óbvia escassez de recursos; de outro, o Serviço pode (e na minha opinião deve) adaptar-se às características do bairro e do profissional de maneira bastante criativa.

Foi assim que em 1991, quando ingressei numa Unidade de Saúde da periferia da zona Sul de São Paulo, senti-me de certa maneira redescobrindo a Psicologia e rompendo com certa rigidez acadêmica, com a qual o trabalho não seria viável. O fato de poder oferecer relaxamento e trabalho corporal à população, inclusive em grupo, foi um dos grandes recursos que permitiram um trabalho versátil e ao mesmo tempo prazeiroso.

Para começar, enfrenta-se a falta de espaço físico do local de trabalho, e em seguida nos damos conta do desconhecimento que a população tem do que seja um psicólogo. Mesmo alguns funcionários desconhecem a natureza da profissão. Um dos primeiros passos acaba sendo formar uma demanda e delinear o que se pode oferecer, paralelamente a ir informando as pessoas a respeito do que seja nosso trabalho. No meu caso, terapeuta Junguiana com formação em trabalho corporal, sempre quis oferecer as técnicas corporais para a população. Logo que foi possível, pedi que fosse acrescentado uma maca ao mobiliário básico da sala que eu viria a usar.

Esta apresentação é o relato dessa experiência.

A Unidade Básica de Saúde onde eu estava era um sobrado com lixo espalhado pela frente e no terreno ao lado, paredes caiadas e recaiadas já cobertas de um mofo escuro e úmido. Logo cedo chegava um mundaréu de gente no salão de baixo, chinelos havaiana e crianças de colo, um burburinho alto feito de protestos e agradecimentos, um ambiente confuso mas ao mesmo tempo estimulante. A sala disponível para mim era a pequena sala do “Arquivo Morto”, com seu cheiro úmido concentrado (pois ficava sempre fechada) e uma quantidade formidável de jornais velhos e pastas antigas de pacientes que há muito não apareciam, tudo pelo chão, amontoado, sem armários ou prateleiras. Uau!

A chefia do Posto, muito disponível, logo tomou as providências para que minha sala se tornasse adequada e durante os primeiros quinze dias desta “reforma” aproveitei para conhecer a rotina do posto e suas outras atividades, assim como para “passear” pelo bairro e conhecer suas ruas e Igrejas, a creche mais próxima, a escola. Descobri que todo dia aquelas pessoas tiravam leite das pedras.

Vi que a opressão de um bairro de periferia, pobre e violento, e tudo parecia sobrepor-se em muito ao que quer que eu pudesse “conversar”.

A vida ali às vezes era caótica demais, concretamente surrealista, de modo que eu mesma não sabia o que valeria a leitura simbólica de qualquer situação. Esclarecendo: toda semana alguém aparecia morto nas ruas do bairro; algumas crianças se prostituíam “à pedido” dos pais, para aumentar a renda familiar; mãe, pai e filhos (três ou quatro) muitas vezes tinham apenas um cômodo para morar, dormindo todos na mesma cama, etc. No bairro, nem sempre a(s) instituição(ões) podia(m) cumprir suas regras, pois às vezes acontecia de um paciente comparecer armado para garantir sua consulta ou sua vaga na escola.

Não que todas as situações fossem assim, mas estes casos eram rotineiros. Jamais, entretanto, sofri qualquer tipo de ameaça ou opressão nesse sentido, mesmo porque, além de ter procurado tratar com muito respeito aquelas pessoas, eu não estava na situação de um médico que era (e é) obrigado a atender um paciente a cada 5 minutos e ainda ter uma fila de espera aflita por uma consulta naquele dia mesmo, ou de um funcionário responsável pela distribuição de leite em pó, por exemplo, “programa” contra a desnutrição muito polêmico e pouco eficaz mas que expõe os funcionários de uma instituição da periferia a situações muito delicadas, pois a quota de leite é obviamente limitada e é preciso “selecionar” quem vai receber. Logo, quem fica sem, culpa imediatamente o funcionário…

Mas, enfim, surgira um espaço de trabalho, e era hora de ocupá-lo. A sala pronta, organizei uma agenda, dias de triagem, de atendimento, de visitas à escola e creche, etc. Tantos detalhes! Todos nós deveríamos estagiar em instituições!

“- Psicólogo? Que que é isso?” “- Vim aqui porque o Dr. mandou…” É mesmo! O que que é um psicólogo? A maior parte dos funcionários não entendia bem o que uma doutora que não veste branco nem usa aparelhos ou dá remédios podia fazer, sem contar o jeito diferente de organizar as consultas. Não havia outro profissional de Saúde Mental no Posto, a não ser a Assistente Social, cuja natureza de atividade é outra. Como explicar o trabalho?

Logo perceberam que eu era uma “doutora” que conversava, minhas consultas eram mais longas, e – surpresa! – na hora marcada. Podiam voltar mais vezes se quisessem, mas não só daqui há dois meses, já na semana que vem mesmo, saindo da sala com o próximo horário já acertado, sem precisar do desgaste dos desencontros do balcão de atendimentos.

Eu falava do trabalho corporal da maneira mais simples possível e lhes perguntava se aceitariam submeter-se a ele a partir de um segundo encontro.

“- A senhora não vai me examinar?

– Não, mas nas próximas consultas, se você aceitar deitar-se aqui, eu gostaria de mexer nos seus pés e depois você me diz como se sentiu. É um tipo de relaxamento…

– Mas na Igreja diz que a gente não pode ser relaxado!

– Não, não é esse “relaxado”, é o “relaxado” de ficar calmo sem precisar de remédio…”

Aplicava principalmente a Calatonia, técnica importante e simples feita de toques nos pés e barriga da perna, excelente para recondicionar o tônus muscular e afetivo, entre outras coisas.

Gostavam, sabe? Na primeira consulta eu pedia para trazerem um lençol, ou toalha de banho, pois o Posto não tinha material adequado, e traziam. Uma vez aconteceu que enquanto eu explicava para a paciente o que trazer para o relaxamento, ela disse:

“- Já trouxe, está aqui.” – e mostrou-me um lençol. Era a sua primeira consulta e eu não entendi.

“- Como assim? Você trouxe um lençol para o Posto de Saúde?

– É.

– Você sabia que eu ia pedir?

– Não.

– Você costuma trazer sempre?

– Não. É que eu tava passando roupa, aí deu a hora de eu vir, aí falei: ‘Ah, vou levar um lençol lá.’ E eu trouxe.

– (!?…) Bem, então podemos hoje mesmo experimentar esses toques nos pés. O que você acha? – julguei que tamanha “coincidência” não devia ser coincidência coisa nenhuma!

– Tá legal.”

Terminada a Calatonia (que eu aplicava em pé devido à altura da maca), para surpresa minha eu tinha dificuldade de andar: a articulação direita entre fêmur e bacia não firmava, simplesmente não me obedecia e até doía um pouco, de modo que tive que me apoiar na mesa para não cair. A paciente, que já se sentava, reparou na minha dificuldade e comentou: “- Dra.! Eu é que sofro o acidente e a senhora é que manca!

– Acidente? Que acidente?”

Há seis meses ela fora atropelada com o filho do lado de dentro do portão da creche (o motorista da creche estava bêbado) e ela atirara-se para salvar o filho, que só sofreu escoriações, mas ela fraturara exatamente aquela articulação, tendo que ficar imobilizada por alguns meses. Ela não relatara nada a respeito até então…

No trabalho corporal vivemos experiências muito ricas. Muitas vezes nosso ritmo respiratório e/ou cardíaco entra em sintonia com o do paciente, nos dando informações sobre nós mesmos e sobre o outro. É uma preciosa forma de contato e de aprendizado.

Devagarinho, caso a caso, fui percebendo que havia possibilidade de formar um grupo de trabalho corporal. As pessoas aceitavam e gostavam. Predominantemente a clientela era de mulheres, donas de casa, um ou outro adolescente (eu não tinha material algum para trabalhar com crianças). Algumas mulheres perguntavam se o marido ou o filho não poderia receber o relaxamento, mas havia a dificuldade com o horário de trabalho de cada um. Talvez elas mesmas pudessem fazer algo para os seus, quem sabe aprendendo outras técnicas num grupo e experimentando aplicá-las. Sim, mas onde?

Em minhas “andanças” antes de ter a sala pronta, eu conhecera uma Igreja próxima, cujo “dono” era o Seu Onofre, uma das lideranças positivas do bairro (“dono” porque ele conseguira através de algum vereador a construção do prédio e era responsável por ele, decidindo que atividades poderiam utilizar o espaço paroquial). Autorizada por minha chefia, perguntei-lhe se eu poderia utilizar semanalmente a sala onde havia aulas noturnas do Mobral e ele concordou, sem reservas.

Um pedaço grande de carpete que seria jogado fora pelo escritório de meu marido garantia a primeira proteção contra o frio das lajotas, e lá fomos nós: em março de 1992, o primeiro grupo agendado, cada paciente com sua toalha na mão, seguia-me curioso e animado até a Igreja. Era divertido e as pessoas pareciam viver aquele momento como um evento, um acontecimento no bairro. Eu aproveitava a oportunidade para falar de alguns detalhes sobre o funcionamento do corpo, mostrava figuras. Por exemplo, a massagem nos pés (que inclusive foi trocada entre eles), foi oportunidade para olhar todos aqueles ossinhos do esqueleto, que provocaram grande espanto. Com o tempo, outras atrações se revelaram: a coluna, o estômago, o útero, a posição em que fica o bebê. Cada trabalho suscitava suas questões e vice-versa.

Outras pessoas se interessavam, e havia necessidade de adaptar o trabalho a várias circunstâncias. Experimentei grupo aberto, fechado, só de mulheres, de mulheres com crianças, etc. Em média, cada grupo (ou ciclo de um grupo) durava quatro semanas.

Não era fácil administrar pacientes “leves” juntamente com suicidas, mães que perderam seus filhos, pré-adolescentes responsáveis por seus 3 ou 4 irmãos menores, etc., mas como não havia possibilidade de abrir outros horários, fui arriscando. Embora fosse difícil manter “o conjunto”, minha sensação era de que a oportunidade poderia ser proveitosa para todos. Houve alguns esbarrões, mas no geral acho que de fato foi muito bom.

Fiquei neste posto por 2 anos e muitas vezes ter o grupo de trabalho corporal como opção foi como um “trunfo” na manga. As lembranças são várias, ricas, surpreendentes. Muitos casos ganharam “nova luz” e novo ritmo com o oferecimento do trabalho corporal tanto em consultório quanto com a experiência de troca em grupo. Isso aproximava as pessoas e abria novos rumos na trajetória pessoal de cada um.

Lembro-me especialmente de uma mulher, 34 anos, que viera trazida pelo marido. Perdera há um mês dois filhos, de 7 e 2 anos, vítimas de uma catapora que lhes afetara a meninge. Restara o do meio, com 4 anos. Obviamente, depressão e depressão e não “tínhamos papo”. Ela não queria e nem saberia conversar. Insisti para que participasse do grupo, apesar das “laqueadas arrependidas” que também estariam lá. Ela acabou aceitando e eu que ficasse atenta com a condução dos temas do grupo!

Não me lembro por quanto tempo ela participou nem de nenhuma grande intervenção de minha parte. Sei que alguns meses se foram e aos poucos ela foi “arranjando assunto” para nossas consultas individuais. Percebi que ela foi começando a se reajeitar na vida: mudou de casa, passou a fazer bombons para vender, acompanhava o filho na escola, voltou a desejar o marido. Eu não sabia da intensidade que o trabalho estava tendo para ela, até que relatou-me um sonho:

“Eu estava andando de ônibus numa estrada, aí aconteceu um acidente. Quando vi, um caixão tinha caído em cima de mim, a ponta dele bem no meu coração. Eu tava desesperada, não conseguia sair de lá. Aí você tirou ele de cima de mim.”

Eu não sabia o que dizer. Imediatamente ela começou a chorar (coisa que jamais acontecera em nossos encontros) e abraçou-me com força: “- Deus lhe pague!”

Sei bem que não tirei nada de cima de ninguém, e que entre despreparos e ingenuidade apenas não deixei escapar a chance de utilizar um recurso cujo alcance temos dificuldade de dizer ou mesmo de avaliar…

“Um toque a quatro patas” – Hannelore Fuchs*

1. Porque terapia corpórea em animais?

A massagem, protótipo de terapia corporal, constitui o mais antigo e mais simples dos remédios, de vez que a estimulação corpórea é necessidade instintiva, primária a ser satisfeita quer no homem, quer nos animais sociais.

Para os mamíferos criados de acordo com as necessidades da espécie, este contato acontece de várias maneiras. Primeiro, a estimulação intra-uterina, depois do nascimento as lambidas da mãe para limpar ou ajudar a defecar, aconchegar, confortar, o contato com o corpo da mãe e dos irmãos , as brincadeiras corpóreas com a mãe e os irmãos, o “grooming”, a troca de lambidas, o deitar junto. Enfim, o corpo do outro está sempre presente e se constitui em fonte de apoio, conforto e prazer.

Isso é o natural. À medida que as tarefas impostas aos animais pelos seres humanos e a maneira de criá-los sofreram mudança radical, a convivência com outros da mesma espécie é rara.

À semelhança dos animais, nós, seres humanos, inseridos na cultura ocidental, pertencemos a uma sociedade em que há rarefação dos contatos corpóreos. Tornamo-nos socialmente intocáveis. Há preponderância de comunicação verbal e visual e uma busca frustrada de interação humana tátil, que encontra alívio no poder tocar o animal irrestritamente. O animal “empresta” o corpo para o socialmente aceito “cafuné”, aos beijos, ao estar no colo, para ser admirado ou ouvido.

Ele é em primeira linha um companheiro, uma companhia do ser humano. Criado para servir passivamente, são lhe impostas condições de convivência nem sempre ideais. Cresce o acervo de conhecimentos quanto a comportamento e consciência, sistemas corretos de manejo, métodos mais sutis de aprendizagem. Concomitantemente, cresce a demanda por um animal ideal, capaz de agüentar longas ausências do dono, acarretando confinamento, isolamento, e falta de estimulação sensorial. Há inibição de comportamentos exploratórios, diminuição de atividade física. É lhe imposto o “estar-sempre-aí”, suportar carinhos, broncas e comida monótona.

O cão é obrigado a levar uma vida centrada no ser humano, isenta de comportamentos próprios da espécie, do caçar ao roer um osso de verdade, do procriar com quem ele gostaria, ao defecar em local atraente aos olhos caninos.

Prisioneiro nas mais diversas gaiolas de ouro, compartilha as vicissitudes do cotidiano humano: poluição ambiental e sonora, ausência de contato com a natureza, perigos e violência nas ruas que lhe impõem restrição de liberdade. Não luta pela sobrevivência material , mas luta pela “posse” do ser humano. Mas isso não ocorre sem ônus. Inserido como está no campo bioenergético humano, é atingido ou, muitas vezes, atua de pára-raios durante as crises humanas. Ele é parceiro nas vivências emocionais do quotidiano e ponte para o re-ligar-se à natureza. Ele, assim como o companheiro humano, vai necessitar de recondicionamento psico-físico.

Habitualmente, a manutenção da integridade física do animal é regida pelo modelo biomédico, decorrente do paradigma cartesiano. O animal deixa de ser apreendido em sua totalidade. Há fragmentação do corpo animal, especialização e especialistas.

A aceitação de tratamentos psicoterápicos com o emprego de técnicas corpóreas tem sido lenta na medicina humana ortodoxa e na psicologia É mais lenta ainda nos redutos da medicina veterinária.

As terapias corporais fazem parte do tratamento holístico do animal, desde que seja considerado como a soma total de seus componentes físicos e psicológicos, inclusive os efeitos de estresse psicológico, nutrição, exercício e modo de vida.

O recondicionamento psico-físico do animal pode ser conseguido com a aplicação de terapias corpóreas.

O emprego de técnicas de abordagem corporal ultrapassa a comunicação verbal e permite um diálogo em que as relações entre doença, psiquismo e consciência são trabalhadas. Daí novas informações são passadas para o animal. Recupera-se a função da pele como órgão de reflexo psicossomático e exteriorizador de emoções. Há reorganização nervosa e das memórias corpóreas a nível celular. Cada célula possui sua própria inteligência, como demonstram os trabalhos do médico e fisiólogo, Sir Charles Sherrington. A célula sadia conhece sua função dentro do corpo, sabe a que parte do todo pertence.

Pelo toque e pelo movimento, novos caminhos nervosos são ativados. Acredita-se que essa ativação se transmita às células cerebrais. O microcosmos espelha o macrocosmos.

Estabelece-se um laço emocional positivo entre quem toca e quem é tocado, diferente das carícias quotidianas dadas aos animais de estimação.

À medida que aperfeiçoamos e trabalhamos com as mãos, nossas mãos “ouvem”. Entramos na seara da comunicação não verbal. O tocar ultrapassa as fronteiras impostas pela diversidade das espécies. A comunicação se faz nos dois sentidos, entre ser humano e animal e vice-versa. O animal transcende sua estrutura biológica. Deixa de ser um conjunto de órgãos e adquire valor simbólico.

2. As origens do trabalho

O que me levou a aplicar técnicas de relaxamento, de massagem e Calatonia em animais foi a convivência com o prof. Pethö Sándor, o criador do método calatônico, as aulas do Curso de Cinesiologia do Instituto Sedes Sapientiae e as vivências do curso “Identidade e Corpo” na PUC-SP.

Eu saía das aulas do Sedes Sapientiae com a minha memória corpórea e cinestésica mobilizada e submergia num mundo clínico composto mais por bichos do que por gente.

O primeiro bicho em que coloquei as mãos para conseguir um relaxamento foi uma pequena Cocker Spaniel, velha, com câncer de mama, espalhado por toda a parede abdominal. Sua dona havia perdido recentemente uma outra cadela em circunstâncias trágicas. O animal tremia, a dona falava incessantemente. Ao invés de receitar psicofármacos, pedi silêncio, fiz a dona sentar numa poltrona e iniciei um trabalho corpóreo no animal . Trabalhei o corpo da cadelinha, da cabeça à ponta da cauda, massagem das pequenas articulações das patas, relaxamento das grandes articulações , por fim Calatonia, nas patinhas posteriores. Quando olho, a dona de tensa e excitada, estava recostada dormitando, semblante tranqüilo . No dizer dela, pela primeira vez em semanas, ela foi capaz de sentir paz.

Com a bagagem teórica e prática trazida do lado humano, iniciei uma série de trabalhos sobre terapia corpórea em animais. Comecei pela Calatonia encorajada pelo prof. Sándor. Os resultados eram uniformemente bons: o animal se acalmava, acontecia aquilo que Sándor preconizava para o ser humano, uma integração psicofísica. Curiosamente, os donos presentes também se beneficiavam.

Apresentei meus primeiros pacientes e a adaptação da Calatonia ao corpo animal no 2º Encontro de Cinesiologia no Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

Se de início, eu apenas usava o relaxamento para cães e gatos estressados, aos poucos fui ampliando o leque das patologias: dores reumáticas, de coluna, paralisias, parestesias, retenção de urina, traumatismos.

Cada sucesso era um incentivo para ampliar e aperfeiçoar o uso desse instrumento valioso. Comecei a desenvolver um método que integra Calatonia, várias formas de massagem e toques, segundo os ensinamentos do prof. Sándor.

Alguns itens deste trabalho, apoiado nos mesmos princípios da terapia corpórea humana, comento a seguir.

3. As técnicas

As técnicas corpóreas empregadas são adaptações pessoais das várias técnicas de massagem, Calatonia, relaxamento, toques e manobras quiropráticas que venho aprendendo, como ser humano que sou, primeiro em relação ao meu corpo. Aprendi que praticar técnicas de terapias corporais é mais uma arte do que uma ciência. Requer habilidade, criatividade, auto-conhecimento, observação e vivência prévia no que se refere ao próprio corpo humano.

Decorre disto que para aplicar técnicas de terapia corpórea em animais, como as de Calatonia, é preciso conhecer e integrar o próprio corpo antes de usá-lo como instrumento terapêutico.

É imprescindível conhecer a anatomia do animal que vai ser tratado, a locomoção, o movimento das articulações, porque o animal não se movimenta da mesma maneira como o ser humano, a começar pelo apoio quadrupedal. O cão e o gato, para dar exemplo de animais mais conhecidos andam na “ponta dos dedos”. Nós andamos sobre os calcanhares.

As escápulas do animal são localizadas lateralmente; no homem sofreram rotação posterior e se situam nas costas. Temos duas clavículas, ausentes em cães e gatos. O tórax é comprimido lateralmente, enquanto o nosso é achatado em sentido antero-posterior. Enquanto nossos glúteos são bem desenvolvidos, os cães e gatos têm a maior massa muscular nas coxas e pernas, como adaptação para saltos. A coluna vertebral e a massa muscular paralela são adaptados para facilitar a locomoção e captura de presas.

O Ambiente de Trabalho

A premissa para o meu trabalho é que o animal, dono e terapeuta estejam relaxados e em conforto. Para que isso aconteça, transformei meu consultório em um espaço reconfortante e aconchegante, de luminosidade controlada, que transmite segurança e tranqüilidade.

As tradicionais mesas de exame veterinário, frias, duras e escorregadias – não importa o material – assustam a qualquer animal. O conforto que quero dar vai derivar dos sinais que ele recebe da pele.

É difícil colocar o animal a uma altura que seja pouco cansativa para o terapeuta. Os animais maiores são colocados no chão, em cima de um colchão. Para os menores forro a mesa com espuma, mantas e toalhas… Se o animal for tratado na mesa, o dono merece uma poltrona que lhe permita sentar e ainda assim segurar o animal.

Uma das minhas primeiras preocupações é lidar com as emoções dos proprietários, de forma que estas não interfiram negativamente no trabalho. Tento excluir os efeitos adversos de tensão, de nervosismo, de descrença. Procuro diminuir a fala às vezes incessante, os afagos e cafunés inapropriados.

a) Mantenho minha atenção focalizada no meu ritmo respiratório e no do meu paciente. Qualquer mudança em profundidade ou freqüência pode indicar dor ou medo, ou relaxamento.

b) Imagino energia fluindo das minhas mãos para o meu paciente.

Apresento como ilustração uma seqüência de massagem em um animal apenas estressado.

1) Coloca-se o animal, se possível, em decúbito lateral ou ventral.

2) Exploração da coluna, começando na base do crânio, e descendo até a região lombar e sacro.

3) Massagem da cabeça, incluindo focinho, região peri-orbitária, base das orelhas.

4) Massagem das patas anteriores, não esquecendo escápulas.

5) Massagem das patas posteriores e coxas. Manipulação das pequenas articulações.

6) Relaxamento da articulação coxo-femural.

7) Massagem do tórax e abdômen.

8) Volta às patas: massagem das membranas interdigitais e massagem dos coxins plantares (Aqui se justifica o uso de creme ou óleo)


Os tipos de toques disponíveis são os seguintes

a) Calatonia

b) Toques simples

c) Toque sem toque

Descompressão fracionada

Dentre as formas básicas de massagem emprego:

a) alisamento ou afagar

b) compressão (pétrissage)

c) batidinhas (percussão ou tapôtement)

Uso manobras de manipulação passiva dos seguintes segmentos corpóreos:

a) Pescoço (vértebras cervicais)

b) cauda

c) coluna vertebral ( torácica, lombo-sacral)

d) pequenas e grandes articulações dos membros anteriores e posteriores.

Geralmente, inicio o procedimento na cabeça. Trabalho em direção crâneo-caudal, com o animal em decúbito lateral, ventral, sentado ou até em estação e na medida do possível, a favor do pêlo.

Recomendo os seguintes cuidados:

a) Começar com toques leves

b) Lembrar que muitos animais não gostam de serem tocados nas patas ou nas regiões pudendas.

c) Equilibrar as polaridades vitais do corpo.

d) Se a terapia corpórea for usada com regularidade, o animal se habitua ao efeito benéfico dos toques. A interrupção das sessões deve ser feita de maneira paulatina.


4. Efeitos da massagem

Os efeitos da massagem, no ser humano, são divididos em mecânicos e reflexos. Os efeitos mecânicos principais são:

a) Auxílio no fluxo de retorno da circulação de sangue e linfa.

b) Movimentação intramuscular e do tecido conjuntivo.

Quanto aos efeitos reflexos encontramos em Krusen, Tratado de Medicina Física e Reabilitação: “Efeitos reflexos são produzidos na pele pela estimulação dos receptores periféricos, os quais transmitem impulsos através da medula espinhal ao cérebro e produzem sensações de prazer ou relaxamento. Perifericamente, estes impulsos causam relaxamento dos músculos e dilatação ou constrição das arteríolas. A sedação é um dos efeitos fisiológicos muito importantes da massagem. Ela é obtida quando a massagem é dada de maneira monotonamente repetitiva, sem variações agudas na pressão ou alterações irritantes no método de aplicação. Estes efeitos agradáveis resultam em relaxamento do músculo, bem como em redução da tensão mental.”

Temos, pois, prazer, relaxamento, diminuição da tensão. Estes achados podem ser enriquecidos quando pensamos em terapia corpórea animal, por várias razões:

a) No consultório, diferentemente do setting humano, onde a relação é apenas terapeuta-paciente, temos uma relação triangular. O proprietário se beneficia “indiretamente” do estado de relaxação induzido no animal, podendo entrar em estado hipnóide. Restabelecem-se elementos de há muito esquecidos da relação primitiva ser humano-animal.

b) Observam-se modificações na respiração e batimentos cardíacos do animal que se tornam mais lentos. A postura muda: se está de pé no início do atendimento, o animal senta ou deita. A imobilidade “gostosa” aparece, junto com relaxamento dos membros.

Há sinais de sonolência e fechamento das pálpebras.

Modificações semelhantes observam-se no dono:

a) Ocorre o relaxamento chegando, em alguns casos, a estado hipnóide. Ouvem-se bocejos e a sonolência se instala.

b) São freqüentes os comentários sobre fatos pertinentes à sua vida emocional, psíquica famíliar, problemas de relacionamento, problemas de saúde. Muitas vezes, os comentários ilustram correlação surpreendente com a doença do animal. Exemplos : Anemia na dona e anemia no cão, coceira humana e eczema canino, dores e problemas na coluna e extremidades e cães e gatos com problemas ósseos e articulares, câncer ósseo da proprietária e osteossarcoma no cão. Um caso ilustrativo é o de Mateus, vira-lata peludo, preto e branco, com paralisia de patas posteriores, possivelmente de origem traumática. Trazido e transportado no carro do colega veterinário, este comenta enquanto observa o meu trabalho ” Você já viu tamanha coincidência? A dona do animal foi atropelada há 5 dias, não consegue guiar, e agora a mesma coisa aconteceu com o animal……..

O animal em casa, depois da sessão, dorme “como nunca dormiu antes”, apresentando claros sinais de recondicionamento psicofísico.


5. Indicações

I. Durante o ciclo evolutivo normal do indivíduo, toques e manipulação e massagem são advogados desde a gestação até a senilidade.

a) Gestação – Durante a gestação, principalmente em fêmeas primíparas com grande número de fetos e distensão acentuada da parede abdominal, o toque produz relaxamento da parede, relaxação e diminuição dos movimentos abruptos dos fetos.

b) Desenvolvimento: O filhote, desde os primeiros dias de vida se beneficia de toques e de manipulações suaves diários. Esta estimulação precoce é importante porque vai facilitar o convívio com o ser humano, a socialização primária vai diminuir a agressividade e as tentativas de dominância em relação ao ser humano.

II. Na esfera comportamental, os animais neuróticos, hipercinéticos, agressivos, ansiosos e outros são auxiliados pelo toque. Encontra-se resposta favorável quando existe um histórico de:

a) Trauma psíquico

b) Estresse

c) Problemas emocionais

d) Hiperatividade

e) Agressividade

f) Medos

g) Automutilação


III. Tanto as massagens quanto os toques são úteis em qualquer condição na qual o alívio da dor, redução do edema ou mobilização de tecidos contraídos é desejada.

Na área de afeções ósseas, musculares e articulares temos a aplicação em fraturas, luxações, lesões de articulações, entorses, contusões e lesões de tendões e nervos.


6. Contra-indicações

São poucas as contra-indicações ao emprego de técnicas de terapia corpórea. Vale destacar:

a) As infeções

b) As queimaduras

c) As tumorações

d) Os estados terminais(?)


7. Como ensinar – dificuldades e pressupostos

Os benefícios da terapia corpórea são reais para a o ser humano em sua totalidade. No Brasil, atestam isso os numerosos trabalhos publicados na última década, as aulas de terapia corpórea em faculdades de psicologia como as da PUC-SP e os cursos de especialização no Instituto Sedes Sapientiae de S. Paulo.

Por outro lado, o emprego em animais de técnicas de abordagem corporal, inclusive Calatonia, é um tópico inusitado. Poderá ser um importante instrumento para auxiliar no tratamento de doenças físicas e distúrbios psíquicos de muitos animais.

O ensino dessas técnicas requer do aprendiz como pressuposto que tenha sido introduzido ao seu uso no âmbito humano.

Porém poucos são, no universo dos médicos veterinários, os que tenham tido algum contato , a não ser como paciente, com qualquer um dos métodos mais difundidos como: reflexoterapia, do-in, shiatsu, etc.

Voltar ao uso das mãos, dos sentidos como instrumento terapêutico implica em romper com a tradição do tratamento à base de produtos farmacêuticos e com técnicas cirúrgicas cada vez mais sofisticados. Modificar a concepção de que o foco da atenção do “curador” deve ser o órgão e não o todo, requer crença em um paradigma diferente de doença e de cura, implica em deixar de lado a visão cartesiana da medicina. Implica em uma volta mais abrangente, em que até técnicas reichianas para aliviar a “couraça canina” são postas a funcionar.

Tocar é magia. É abrir canais para uma outra dimensão de nosso relacionamento com o mundo animal. As chaves são nossas mãos, as pontas dos nossos dedos, a energia que emana de um toque sem toque.

Bibliografia

BAUMEL, C. Bien communiqver avec -vou chien, Paris, Editions de Vecchi, S.A., 1993.

DELMANTO, S. Toques Sutis. S. Paulo, Summus Ed., 1997.

FARAH, R.M. Integração Psicofísica. S. Paulo, Robe Editorial, 1995.

GILBERT, S.G. Pictorial anatomy of the cat. Seattle, University of Washington Press, 1977.

GORDON, R. A Cura pelas Mãos. S. Paulo, Ed. Pensamento, 1978.

MAITLAND, G.D. Manipulação Vertebral. 5a.Ed. S. Paulo, Ed. Médica Panamericana, 1986.

KOTTKE, F.J., STILLWELL, G.K. & LEHMANN, J.F. Krusen: Tratado de Medicina Física e Reabilitação. 3a. Ed. S.Paulo, Ed. Manole, 1986.

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POMPÉIA, L.S.N. Nosso Trabalho em Curso. HERMES, 1, 1996, p. 36.

SANDOR, P. Técnicas de Relaxamento. 4a. Ed. São Paulo, Vetor Ed. Psico-Pedagógica Ltda.1982.

TELLINGTON-JONES, L. Der neue Weg im Umgang mit Tieren. Stuttgart, Franckh-Kosmos Verlag, 1993.

STILLERMAN, E. The encyclopedia of bodywork. New York, Facts ou File, Inc., 1996.


*Artigo publicado na Revista: “Boletim Clínico” no. 3 – PUC-SP

“A Origem da Calatonia” Rosa Maria Farah

Adaptação do texto: “A Origem da Calatonia” de Rosa Maria Farah, 2016.

A técnica foi criada por Pethö Sándor, um médico húngaro que se radicou no Brasil desde 1949 (até seu falecimento em 1992) aqui desenvolvendo trabalhos clínicos, de ensino e de pesquisa iniciados quando ainda vivia na Europa na época do pós-guerra.

Na época da Segunda Guerra Mundial, Sándor trabalhou no atendimento de feridos e refugiados em deslocamento pela Europa. Naquele período, dadas as precárias condições geradas pela guerra, com frequência via-se diante de situações em que os recursos médicos, além de escassos, eram de pouca ajuda no atendimento a seus pacientes. Nesse contexto, Dr. Sándor foi designado para o cuidado de pacientes com os mais variados traumatismos, conforme ele mesmo relatou ao falar sobre o surgimento de seu método:

“Idealizou-se este método durante a Segunda Guerra Mundial, com base nas observações feitas em casos de readaptação de feridos e congelados, no período posterior à grande retirada da Rússia. Num hospital da Cruz Vermelha foram atendidas as mais diferentes queixas na fase pós-operatória, desde membros fantasma e abalamento nervoso, até depressões e reações compulsivas (SÁNDOR, 1974, p. 92)”.

Era praticamente impossível estabelecer um limite entre o traumatismo físico e o sofrimento psicológico que atingia estes pacientes. Mas Sándor já estava atento às estreitas relações existentes entre os processos corporais e o funcionamento psicoemocional. Foi, portanto, nestas condições dramáticas de trabalho que ele tentou utilizar os ‘métodos de relaxamento’ usuais na época, como o método de Schultz (SÁNDOR, 1974, pp. 69-83). Porém, não obteve sucesso, pois a gravidade da condição destes pacientes não lhes permitia a concentração necessária e eles não se sentiam motivados a colaborar com a aplicação deste método. Foi quando Sándor observou o seguinte:

“Percebeu-se então, que além da medicação costumeira e dos cuidados de rotina, o contato bipessoal, juntamente com a manipulação suave nas extremidades e na nuca, com certas modificações leves quanto à posição das partes manipuladas, produzia descontração muscular, comutações vasomotoras e recondicionamento do ânimo dos operados, numa escala pouco esperada (SÁNDOR, 1974, p. 92).”

Em linguagem coloquial, podemos dizer que Sándor está nos orientado com base em seu conhecimento médico e em sua intuição, sobre a atuação terapêutica propiciada pelo contato suave, atento e cuidadoso, pois ao aplicar toques sutis nesses pacientes, ainda que de modo não estruturado em uma técnica específica, observou reações positivas e indícios de recuperação tanto física como psicológica.

Aqueles que conhecem um pouco da história pessoal do Dr. Sándor sabem o quanto ele, bem como sua família, foram duramente atingidos pelos horrores da guerra. No entanto, percebemos nas entrelinhas de suas colocações a atitude compassiva e amorosa que assumia diante do sofrimento de seus pacientes…!

Sándor trabalhou na Alemanha por mais de três anos, cuidando de pacientes com queixas psicológicas ou neuropsiquiátricas. Neste período já começava a sistematizar e fundamentar sua técnica – a primeira sequência de toques sutis da Calatonia – com base nos conhecimentos da Psicologia e da Neurologia. Em 1949 emigrou para o Brasil, onde prosseguiu seu trabalho, atuando principalmente na área da Psicologia.

Vivendo já em São Paulo, como psicoterapeuta e docente, começou a aplicar e ensinar a Calatonia, que passou a ser conhecida por seus alunos, como um “método de relaxamento”. E, como tal, passou a ser utilizada no atendimento psicoterapêutico.

Ao longo de mais de mais de 50 anos de trabalho, o Prof. Sándor acrescentou inúmeros procedimentos à sequência inicial conhecida como Calatonia. Sempre mantendo as mesmas características básicas de aplicação (ou seja, estímulos táteis realizados de forma suave), idealizou várias sequências de toques que passaram a ser conhecidas, juntamente com a Calatonia, como Toques Sutis. Além disso, realizou e transmitiu aos seus alunos farta pesquisa sobre os processos anátomo-fisiológicos envolvidos na aplicação destes toques.

No Brasil, o ensino formal do método da Calatonia tem se dado predominantemente por meio de disciplinas ou módulos específicos, oferecidos em cursos de Graduação de Psicologia, particularmente na PUC-SP e de pós-graduação lato sensu, como o curso de especialização em Psicologia Analítica e Abordagem Corporal – Jung & Corpo, promovido pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Este curso derivou-se dos extintos cursos – Terapia Psicomotora – posteriormente designado como Psicologia Analítica Coligada a Técnicas Corporais, também ofertados pelo Instituto Sedes Sapientiae, juntamente com o curso de extensão, conhecido como Cinesiologia Psicológica, recentemente desativado, que acolheu durante anos, alunos que já haviam cursado disciplinas na PUC, ou os outros cursos do Instituto Sedes. Sándor ministrou aulas em todos esses cursos durante mais de 20 anos, até 1992, ano de sua morte.

Após o falecimento de Sándor, em 28 de Janeiro de 1992, em plena atividade criativa, um grupo de ex-alunos deu continuidade aos seus ensinamentos, mantendo ativas estas disciplinas e cursos, que seguem a metodologia de ensino de Sándor, de caráter predominantemente vivencial e aprendizado contextualizado de várias técnicas corporais, além da Calatonia e dos toques sutis. Entre as inciativas deste grupo, foi criado o CID, (Centro de Integração e Desenvolvimento), grupo informal, cuja denominação foi inspirada na sigla utilizada por Sándor em apostilas, confeccionadas e distribuídas por ele em seus cursos, que tem por objetivo preservar os princípios originais da Calatonia.