“A versão do paciente – Paciente 1” – Terapeuta Maria Rosa Spinelli

Este é um relato de uma pessoa tratada por profissionais com postura psicossomática, aplicando o método da Calatonia. Ainda que todos tenham permitido sua publicação, nem a paciente nem os profissionais implicados no caso foram identificados. Verifique os resultados.

Maria Rosa Spinelli – Terapeuta

“Procurei um trabalho corporal, a Calatonia, por indicação de amigos. Sentia na época muita resistência em fazer uma terapia na qual precisasse falar muito, embora eu seja considerada uma pessoa falastrona. E devo confessar que, a princípio, imaginei que a técnica me ofereceria apenas relaxamento. Ainda assim, nas primeiras sessões não conseguia relaxar. Observei então que, certo dia, passei a ter umas sensações diferentes. Nos momentos de relaxamento me vinham à mente imagens estranhas e, às vezes, cores que flutuavam.

Cheguei a experimentar aquelas ‘sensações estranhas’, mesmo após a sessão, no momento em que estava num jardim. Senti a súbita necessidade de aconchego, ao mesmo tempo em que parecia estar cheia de energia e que não precisaria nem dormir. No dia seguinte, apesar de pálida, estava me sentindo bem, sem tristeza, sem sono, carregando a sensação de que algum fato que eu agora ignorava tinha se passado.

Também costumo voltar alegre das sessões, mas com a impressão de ter uma ‘carga elétrica’ acumulada. Nessas ocasiões, desejo fazer coisas e falar muito sobre o que aconteceu. Por outro lado, sinto que preciso ser ninada e a frustração por isso não acontecer. Vem-me à cabeça a palavra mãe e sinto o coração explodindo, batendo mais rápido, com ansiedade. Levanto-me e sinto vontade de sair, andar, chorar, rir, enfim, de viver.

Numa espécie de associação de idéias, me vêm outras palavras: mãe… perda… preciso… ternura… me acaricie… traição. Fantasio a imagem de alguém me cobrindo. Interessante notar que nunca tive dificuldades para dormir. Agora durmo e logo depois acordo, com a certeza de que sonhei, mas não me lembro com quê. A única lembrança é de uma figura masculina que poderia ser meu pai, não sei.

O mais interessante é que não tenho tido vontade de conversar sobre tais sensações mas fico horas pensando a respeito, ou melhor, sentindo essas coisas e começo a observar que minha autopercepção é melhor agora.

“Como um bebê, que ridículo!”

O meu joelho esquerdo dói, o meu braço dói e não sei por que abraço o travesseiro para me aconchegar. Adormeço e acordo fria, como se precisasse de muito carinho para me aquecer. Sinto falta de ser mimada mesmo, feito um bebê. Que ridículo! Já tenho mais de 30 anos.

Sinto um vazio, provocado por algo inacabado. No escuro, como numa espécie de lamento tenho vontade de ‘não apague a luz, fique comigo até eu dormir; espere eu acordar e saber que realmente você existe’. Mas quem? Preciso saber que você existe e nunca vai me deixar, que você me ama. Acho que poderia dizer isto a alguém, que não sei quem é. Essas sensações são demais angustiantes mas não quero deixar de tê-las, sei que preciso delas. Penso que estou ficando deprimida ou masoquista.

Agora só me vêm muita tristeza e vontade de estar só, vendo a natureza, olhando o verde, ouvindo o som da água cair, como em um riacho, e chorar (mas por que?- a minha vida é boa, tenho vários amigos, me sinto amada e, na verdade, não estou só, tenho meu namorado, a minha família). Não consigo entender por que esses sentimentos aparecem.

A sensação é de abandono, de não ter com quem contar. Voltam-me à lembrança cenas da infância: o tombo, o pesadelo, o medo, o dia da injeção que recebi nos braços de meu pai, a fuga para a escola, a visão de espancamento, o meu pavor, o meu sofrimento, a cadeira diferente, o primeiro livro que ganhei, o café da manhã, minha mãe preparando minha sopa de pão, a hora da escola, meu pulôver vermelho, a briga, a febre, a faca. O abandono de meus irmãos – eu era pequena, chata e doente.

Lembro-me também das três cirurgias por que passei. Até quando vou continuar escapando de outras? Por que não tenho sensibilidade para dores, o que me falta para sentir o começo de uma doença? Quando percebo estão avançadas. A única certeza é da morte, mas como contestar isto?

Vômitos. Tenho horror a eles, mas são constantes e sangrentos. Vários exames – tenho a sensação de frio e é um frio úmido, que vem dos pés para as pernas, como se tivesse feito xixi e batesse um vento.

Bem vou parar. Estou ficando triste demais.”

Após esse período de anotações, a paciente relata que deixou de escrever, porque se sentia triste demais e com vontade imensa de deixar tudo:

“Não era vontade de morrer nem de sumir, mas de ter um lugar de muito sossego e paz. Mas a minha vida, fui eu que a escolhi assim”. (sic)

Importante descobrir-se

Ela disse ainda que, por mais que sofresse, tinha de estar mais consigo mesma, tentando buscar a si própria dentro de “alguma coisa nebulosa”. Observem que, durante todo este processo, esta pessoa não solicita de sua terapeuta nenhuma interpretação, por acreditar que seria mais importante descobrir-se através das sensações e imagens que sobrevinham a cada sessão e a cada noite.

Por fim, relata que se sentiu muito bem, que cessaram as imagens, e por isso deixou a terapia, não voltou a fazer Calatonia.

“Tudo realmente parecia estar muito bem, mas andava mais quieta. Os amigos percebiam isto. Eu não. Comecei a ter um certo nojo dos cheiros de comida. Primeiro, foi com relação à comida japonesa, apesar de sempre ter adorado comê-la, até então. Depois, passei a ter aversão por carne, chocolate, doce e, gradativamente, deixei de querer comer tudo. Quando forçava, sentia-me muito mal e vomitava tudo. O mal-estar se generalizava e aí não mais conseguia identificar as sensações.

Mas nunca negligenciei minhas responsabilidades. Fui percebendo que deixava de comer, só isso.

Um dia, precisei ser levada ao Pronto Socorro. Parecia ser uma labirintite, mas os exames não comprovaram nada. Foi então que voltei a procurar a terapeuta. Senti ainda que precisava daquele abraço por mais tempo.

Minha terapeuta me orientou a procurar um gastroenterologista, mas isto eu já estava fazendo há dois anos. Tomava doses diárias de um medicamento, sem grandes resultados pois continuavam os regurgitamento, vômitos e azia.

Nesse período comecei a piorar também emocionalmente. Comecei a experimentar uma sensação fria no centro de meu peito e de afastamento das pessoas. Parei quase totalmente de comer e me sentia fraca. Estar com anorexia era o meu medo. Conhecia o quadro através das revistas, mas não tinha muito mais informação a respeito.

Não sentia mais fome nem o sabor dos alimentos. Eles inchavam em minha boca. Daí, passei a deixar de beber até mesmo água. Fiquei preocupada e a minha terapeuta começou a ligar para minha casa nos horários em que, ela sabia, deveria estar comendo ou tentando comer. Interessante, comecei a me alimentar só com coisas muito leves enquanto falava com ela.

Foi quando mudei de gastroenterologista. Procurei, por indicação, um médico que também seguisse a postura psicossomática (devo confessar que para mim psicossomática era uma especialidade).


Exame não-invasivo

Três meses depois, cheguei ao consultório dez quilos mais magra, cheia de medos com mil e uma fantasias, associando meu estado à possibilidade de ter Aids ou até câncer. O médico ouviu tudo, olhou todos os exames que já havia feito e, pacientemente, me deixou relatar todo o meu histórico de doenças, desde a infância até o momento atual.

Só então, calmamente, relacionou as doenças às dificuldades da vida atual, das relações familiares e de nossos envolvimentos sociais e pessoais. Examinou-me clinicamente e sugeriu que eu fizesse mais um único exame, não-invasivo, para verificar a deglutição. Receitou-me um medicamento e eu saí dali bastante aliviada. Ainda com medo, mas me sentindo mais confiante, querendo acreditar que sua confiança e minhas queixas estavam dentro de uma sintonia, e que agora eu poderia realmente melhorar”.

Nessa ocasião a paciente começa a perceber que, ao sair de São Paulo e conseguir ficar relaxada, seu estado geral melhorava. Porém, se comesse algum alimento mais forte ou condimentado, sentia novamente as tonturas, tinha a micção aumentada e os vômitos repetidos. Descobriu também que seu organismo agora só aceitava alimentos leves mas que, ainda assim, não podia pensar que estava comendo, para conseguir se alimentar.

Outras vezes o que a ajudava a alimentar-se melhor era pensar na sua terapeuta. A luta para comer era uma coisa absurda e dolorosa. Ora ela se sentia forte e capaz, ora se sentia necessitada de colo e muito fragilizada. O mais inaceitável, porém, segundo ela, era a consciência de sua dependência com relação à figura da terapeuta.

Aceitar a mamadeira

Um dia, sem pensar, disse à terapeuta ao final de uma sessão de Calatonia: “Já aceitei a mamadeira”. Depois prosseguiu: “Senti vergonha pelo que havia dito, pois sempre imaginara ser uma pessoa racional. Mas ter dito aquela frase me fez bem. Não sabia bem o porquê, mas tinha a certeza que estava começando a aceitar alguma coisa de que precisava muito. Mais tarde percebi que o que precisava era de ternura e do amor que essa terapeuta me transmitia. Depois disso, passei a me sentir mais feliz, a voltar a ser quem eu sentia que era.

Meus vômitos diminuíram. Numa das consultas com o gastroenterologista falei-lhe sobre a percepção de minha própria ansiedade. Ele me ouviu atentamente, demonstrando valorizar minhas palavras e me explicando o quanto era importante essa minha percepção. Disse-me também ter percebido em mim essa ansiedade e que meus sintomas não tinham classificação específica. Na verdade, eles eram mais funcionais e, por isso, teria que permanecer com os medicamentos e com seu acompanhamento médico até que me sentisse realmente bem e voltasse a comer de tudo de forma moderada. Orientou-me para não deixar a terapia enquanto isso não ocorresse. Senti-me cuidada, muito bem cuidada, crescendo novamente, agora com mais tranqüilidade.

O que me aconteceu em termos técnicos, não me importa. O mais importante para mim foi a confiança que tive nesses dois profissionais, o enfrentamento do medo da dependência e a percepção de minha carência afetiva, que gerava em mim a sensação de estar desprotegida diante do mundo.

Vejo-me hoje muito bem, a ponto de permitir essa entrevista. E agradeço isso a esses profissionais, por não temerem manifestar seu carinho aos pacientes. Foram eles que me deram tempo para que eu descobrisse minhas necessidades e descobrisse, à medida em que fosse vencendo meus medos, do que precisava e tinha buscado ao longo de anos acumulados de histórias, até perceber que queria mudar minha forma de amar e me permitir ser amada por outras pessoas além de meus pais. Espero que isto ajude outras pessoas”.

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O que é Calatonia?

CALATONIA: é uma metodologia de trabalho de abordagem psicossomática, que traz uma contribuição ao uso do corpo em psicoterapia, conciliando a noção de equilíbrio de mente e corpo. Surgiu da proposta de Pethö Sándor (1969), visa obter a descontração muscular e, paralelamente, fazer a pessoa alcançar um estado de tranqüilidade e introspeção. O termo deriva do verbo grego “Khalaó” e significa: relaxamento, afastar-se do estado de ira, fúria, violência, abrir uma porta, desatar amarras, deixar ir, perdoar os pais, retirar o véu dos olhos.

DESCRIÇÃO DO MÉTODO: o relaxamento do paciente é alcançado pelo terapeuta através de estímulos monótonos, oferecidos por meio de toques suaves e seqüenciais nos dedos dos pés, no calcanhar, na convergência tendinosa do tríceps sural da região posterior da perna (barriga da perna). O paciente fica deitado em decúbito dorsal, com os braços estendidos ao longo do corpo e de olhos fechados, de preferência.

Maria Rosa Spinelli é Psicóloga Clínica e Diretora Cientifica da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática – Regional São Paulo.