“Trabalho corporal – Um breve relato de uma experiência na periferia de São Paulo” – Rita de Cássia Hetem Assaly

Nos últimos anos, muitos psicólogos têm ingressado em instituições de saúde. A maior parte das vezes, não encontram em seus locais de trabalho todas as condições estruturais ideais para o desenvolvimento dos atendimentos conforme os ditames acadêmicos e por vezes enfrentam também pouca compreensão do que seja seu trabalho. “Instalar” um Serviço de Psicologia num Posto de Saúde (ou Unidade de Saúde) da periferia de São Paulo acaba tendo um caráter pioneiro, com suas vantagens e desvantagens: de um lado, certa solidão e óbvia escassez de recursos; de outro, o Serviço pode (e na minha opinião deve) adaptar-se às características do bairro e do profissional de maneira bastante criativa.

Foi assim que em 1991, quando ingressei numa Unidade de Saúde da periferia da zona Sul de São Paulo, senti-me de certa maneira redescobrindo a Psicologia e rompendo com certa rigidez acadêmica, com a qual o trabalho não seria viável. O fato de poder oferecer relaxamento e trabalho corporal à população, inclusive em grupo, foi um dos grandes recursos que permitiram um trabalho versátil e ao mesmo tempo prazeiroso.

Para começar, enfrenta-se a falta de espaço físico do local de trabalho, e em seguida nos damos conta do desconhecimento que a população tem do que seja um psicólogo. Mesmo alguns funcionários desconhecem a natureza da profissão. Um dos primeiros passos acaba sendo formar uma demanda e delinear o que se pode oferecer, paralelamente a ir informando as pessoas a respeito do que seja nosso trabalho. No meu caso, terapeuta Junguiana com formação em trabalho corporal, sempre quis oferecer as técnicas corporais para a população. Logo que foi possível, pedi que fosse acrescentado uma maca ao mobiliário básico da sala que eu viria a usar.

Esta apresentação é o relato dessa experiência.

A Unidade Básica de Saúde onde eu estava era um sobrado com lixo espalhado pela frente e no terreno ao lado, paredes caiadas e recaiadas já cobertas de um mofo escuro e úmido. Logo cedo chegava um mundaréu de gente no salão de baixo, chinelos havaiana e crianças de colo, um burburinho alto feito de protestos e agradecimentos, um ambiente confuso mas ao mesmo tempo estimulante. A sala disponível para mim era a pequena sala do “Arquivo Morto”, com seu cheiro úmido concentrado (pois ficava sempre fechada) e uma quantidade formidável de jornais velhos e pastas antigas de pacientes que há muito não apareciam, tudo pelo chão, amontoado, sem armários ou prateleiras. Uau!

A chefia do Posto, muito disponível, logo tomou as providências para que minha sala se tornasse adequada e durante os primeiros quinze dias desta “reforma” aproveitei para conhecer a rotina do posto e suas outras atividades, assim como para “passear” pelo bairro e conhecer suas ruas e Igrejas, a creche mais próxima, a escola. Descobri que todo dia aquelas pessoas tiravam leite das pedras.

Vi que a opressão de um bairro de periferia, pobre e violento, e tudo parecia sobrepor-se em muito ao que quer que eu pudesse “conversar”.

A vida ali às vezes era caótica demais, concretamente surrealista, de modo que eu mesma não sabia o que valeria a leitura simbólica de qualquer situação. Esclarecendo: toda semana alguém aparecia morto nas ruas do bairro; algumas crianças se prostituíam “à pedido” dos pais, para aumentar a renda familiar; mãe, pai e filhos (três ou quatro) muitas vezes tinham apenas um cômodo para morar, dormindo todos na mesma cama, etc. No bairro, nem sempre a(s) instituição(ões) podia(m) cumprir suas regras, pois às vezes acontecia de um paciente comparecer armado para garantir sua consulta ou sua vaga na escola.

Não que todas as situações fossem assim, mas estes casos eram rotineiros. Jamais, entretanto, sofri qualquer tipo de ameaça ou opressão nesse sentido, mesmo porque, além de ter procurado tratar com muito respeito aquelas pessoas, eu não estava na situação de um médico que era (e é) obrigado a atender um paciente a cada 5 minutos e ainda ter uma fila de espera aflita por uma consulta naquele dia mesmo, ou de um funcionário responsável pela distribuição de leite em pó, por exemplo, “programa” contra a desnutrição muito polêmico e pouco eficaz mas que expõe os funcionários de uma instituição da periferia a situações muito delicadas, pois a quota de leite é obviamente limitada e é preciso “selecionar” quem vai receber. Logo, quem fica sem, culpa imediatamente o funcionário…

Mas, enfim, surgira um espaço de trabalho, e era hora de ocupá-lo. A sala pronta, organizei uma agenda, dias de triagem, de atendimento, de visitas à escola e creche, etc. Tantos detalhes! Todos nós deveríamos estagiar em instituições!

“- Psicólogo? Que que é isso?” “- Vim aqui porque o Dr. mandou…” É mesmo! O que que é um psicólogo? A maior parte dos funcionários não entendia bem o que uma doutora que não veste branco nem usa aparelhos ou dá remédios podia fazer, sem contar o jeito diferente de organizar as consultas. Não havia outro profissional de Saúde Mental no Posto, a não ser a Assistente Social, cuja natureza de atividade é outra. Como explicar o trabalho?

Logo perceberam que eu era uma “doutora” que conversava, minhas consultas eram mais longas, e – surpresa! – na hora marcada. Podiam voltar mais vezes se quisessem, mas não só daqui há dois meses, já na semana que vem mesmo, saindo da sala com o próximo horário já acertado, sem precisar do desgaste dos desencontros do balcão de atendimentos.

Eu falava do trabalho corporal da maneira mais simples possível e lhes perguntava se aceitariam submeter-se a ele a partir de um segundo encontro.

“- A senhora não vai me examinar?

– Não, mas nas próximas consultas, se você aceitar deitar-se aqui, eu gostaria de mexer nos seus pés e depois você me diz como se sentiu. É um tipo de relaxamento…

– Mas na Igreja diz que a gente não pode ser relaxado!

– Não, não é esse “relaxado”, é o “relaxado” de ficar calmo sem precisar de remédio…”

Aplicava principalmente a Calatonia, técnica importante e simples feita de toques nos pés e barriga da perna, excelente para recondicionar o tônus muscular e afetivo, entre outras coisas.

Gostavam, sabe? Na primeira consulta eu pedia para trazerem um lençol, ou toalha de banho, pois o Posto não tinha material adequado, e traziam. Uma vez aconteceu que enquanto eu explicava para a paciente o que trazer para o relaxamento, ela disse:

“- Já trouxe, está aqui.” – e mostrou-me um lençol. Era a sua primeira consulta e eu não entendi.

“- Como assim? Você trouxe um lençol para o Posto de Saúde?

– É.

– Você sabia que eu ia pedir?

– Não.

– Você costuma trazer sempre?

– Não. É que eu tava passando roupa, aí deu a hora de eu vir, aí falei: ‘Ah, vou levar um lençol lá.’ E eu trouxe.

– (!?…) Bem, então podemos hoje mesmo experimentar esses toques nos pés. O que você acha? – julguei que tamanha “coincidência” não devia ser coincidência coisa nenhuma!

– Tá legal.”

Terminada a Calatonia (que eu aplicava em pé devido à altura da maca), para surpresa minha eu tinha dificuldade de andar: a articulação direita entre fêmur e bacia não firmava, simplesmente não me obedecia e até doía um pouco, de modo que tive que me apoiar na mesa para não cair. A paciente, que já se sentava, reparou na minha dificuldade e comentou: “- Dra.! Eu é que sofro o acidente e a senhora é que manca!

– Acidente? Que acidente?”

Há seis meses ela fora atropelada com o filho do lado de dentro do portão da creche (o motorista da creche estava bêbado) e ela atirara-se para salvar o filho, que só sofreu escoriações, mas ela fraturara exatamente aquela articulação, tendo que ficar imobilizada por alguns meses. Ela não relatara nada a respeito até então…

No trabalho corporal vivemos experiências muito ricas. Muitas vezes nosso ritmo respiratório e/ou cardíaco entra em sintonia com o do paciente, nos dando informações sobre nós mesmos e sobre o outro. É uma preciosa forma de contato e de aprendizado.

Devagarinho, caso a caso, fui percebendo que havia possibilidade de formar um grupo de trabalho corporal. As pessoas aceitavam e gostavam. Predominantemente a clientela era de mulheres, donas de casa, um ou outro adolescente (eu não tinha material algum para trabalhar com crianças). Algumas mulheres perguntavam se o marido ou o filho não poderia receber o relaxamento, mas havia a dificuldade com o horário de trabalho de cada um. Talvez elas mesmas pudessem fazer algo para os seus, quem sabe aprendendo outras técnicas num grupo e experimentando aplicá-las. Sim, mas onde?

Em minhas “andanças” antes de ter a sala pronta, eu conhecera uma Igreja próxima, cujo “dono” era o Seu Onofre, uma das lideranças positivas do bairro (“dono” porque ele conseguira através de algum vereador a construção do prédio e era responsável por ele, decidindo que atividades poderiam utilizar o espaço paroquial). Autorizada por minha chefia, perguntei-lhe se eu poderia utilizar semanalmente a sala onde havia aulas noturnas do Mobral e ele concordou, sem reservas.

Um pedaço grande de carpete que seria jogado fora pelo escritório de meu marido garantia a primeira proteção contra o frio das lajotas, e lá fomos nós: em março de 1992, o primeiro grupo agendado, cada paciente com sua toalha na mão, seguia-me curioso e animado até a Igreja. Era divertido e as pessoas pareciam viver aquele momento como um evento, um acontecimento no bairro. Eu aproveitava a oportunidade para falar de alguns detalhes sobre o funcionamento do corpo, mostrava figuras. Por exemplo, a massagem nos pés (que inclusive foi trocada entre eles), foi oportunidade para olhar todos aqueles ossinhos do esqueleto, que provocaram grande espanto. Com o tempo, outras atrações se revelaram: a coluna, o estômago, o útero, a posição em que fica o bebê. Cada trabalho suscitava suas questões e vice-versa.

Outras pessoas se interessavam, e havia necessidade de adaptar o trabalho a várias circunstâncias. Experimentei grupo aberto, fechado, só de mulheres, de mulheres com crianças, etc. Em média, cada grupo (ou ciclo de um grupo) durava quatro semanas.

Não era fácil administrar pacientes “leves” juntamente com suicidas, mães que perderam seus filhos, pré-adolescentes responsáveis por seus 3 ou 4 irmãos menores, etc., mas como não havia possibilidade de abrir outros horários, fui arriscando. Embora fosse difícil manter “o conjunto”, minha sensação era de que a oportunidade poderia ser proveitosa para todos. Houve alguns esbarrões, mas no geral acho que de fato foi muito bom.

Fiquei neste posto por 2 anos e muitas vezes ter o grupo de trabalho corporal como opção foi como um “trunfo” na manga. As lembranças são várias, ricas, surpreendentes. Muitos casos ganharam “nova luz” e novo ritmo com o oferecimento do trabalho corporal tanto em consultório quanto com a experiência de troca em grupo. Isso aproximava as pessoas e abria novos rumos na trajetória pessoal de cada um.

Lembro-me especialmente de uma mulher, 34 anos, que viera trazida pelo marido. Perdera há um mês dois filhos, de 7 e 2 anos, vítimas de uma catapora que lhes afetara a meninge. Restara o do meio, com 4 anos. Obviamente, depressão e depressão e não “tínhamos papo”. Ela não queria e nem saberia conversar. Insisti para que participasse do grupo, apesar das “laqueadas arrependidas” que também estariam lá. Ela acabou aceitando e eu que ficasse atenta com a condução dos temas do grupo!

Não me lembro por quanto tempo ela participou nem de nenhuma grande intervenção de minha parte. Sei que alguns meses se foram e aos poucos ela foi “arranjando assunto” para nossas consultas individuais. Percebi que ela foi começando a se reajeitar na vida: mudou de casa, passou a fazer bombons para vender, acompanhava o filho na escola, voltou a desejar o marido. Eu não sabia da intensidade que o trabalho estava tendo para ela, até que relatou-me um sonho:

“Eu estava andando de ônibus numa estrada, aí aconteceu um acidente. Quando vi, um caixão tinha caído em cima de mim, a ponta dele bem no meu coração. Eu tava desesperada, não conseguia sair de lá. Aí você tirou ele de cima de mim.”

Eu não sabia o que dizer. Imediatamente ela começou a chorar (coisa que jamais acontecera em nossos encontros) e abraçou-me com força: “- Deus lhe pague!”

Sei bem que não tirei nada de cima de ninguém, e que entre despreparos e ingenuidade apenas não deixei escapar a chance de utilizar um recurso cujo alcance temos dificuldade de dizer ou mesmo de avaliar…