“O toque e três histórias” – Maria Amélia Pereira

Quando compreendemos o corpo como um sutil instrumento musical com múltiplas cordas, ele poderá evocar em nós uma escala tão ampla de experiências e vivências que estão bem acima das até então registradas e escritas.”

(Ensinamentos Antigos)

No convívio diário com um grupo de crianças entre dois anos e meio a sete anos, que passam as manhãs brincando num espaço da Natureza, fomos constatando a existência de um currículo interno expresso por cada criança que neste lugar tem a oportunidade de vivenciar seu tempo, seu espaço, afirmando e confirmando a existência de uma cultura que lhe é própria: o “SER CRIANÇA”.

Olhando-as, escutando-as, acompanhando-as em suas brincadeiras poderíamos dizer que a criança brinca porque se desenvolve e se desenvolve porque Brinca.

É o “Brincar”, sem dúvida um dos processos de conhecimento, o mais eficaz deste período de desenvolvimento.

O impacto do que há aproximadamente quatorze anos vimos presenciando no trabalho desenvolvido com as crianças pela Casa Redonda nos levou ao registro e documentação de gestos e falas do universo da criança. Esse acervo se constitui hoje numa fonte de infinitas possibilidades; através dele poderemos ser tocados por imagens que nos conduzirão a uma leitura mais profunda sobre o “SER CRIANÇA”, com conseqüente revisão de nossa prática educacional e/ou terapêutica.

Quando Mário de Andrade afirma que “o brinquedo socializa mais do que uma sessão solene e que na liberdade do brinquedo se determinam inconscientemente muitas características de uma raça…”, eis a pura verdade! E completa com: ” Poder-se-ia escrever um livro sobre a Psicologia das raças estudando-lhes unicamente os brinquedos nacionais.”

Isto, porque ao Brincar, a criança vive experiências subjetivas que se encontram em níveis muito profundos dissolvendo as divisões entre o que está dentro e o que está fora comunicando a experiência do SER.

William Blake nos seus “Cantos de Inocência” apresenta a Infância como o “espontâneo vivo, a pura essência do espírito da vida”. O poeta do século da Revolução Francesa identifica “a infância não como um estado de ignorância e inexperiência mas como um estado de SER, o tempo da convivência e comunhão, onde tudo está em comunicação: o sol, a lua, o dia, a noite, os sonhos, os anjos…

A criança vive aceitando-os como “reais”. Este mesmo pintor e poeta pede nos seus “Cantos”, “para que não se abafe a inocência infantil e que não se permita que a atitude racional que tiraniza o homem, atentando contra a precisa e concreta realidade do espírito, impeça aos olhos alcançar aquilo que vai além do mundo das aparências.”

Sabemos que quando a criança Brinca ela cria um TEMPO e ESPAÇO próprios e experimentando a inesperada aventura de um impulso interno, ela o representa em ATO. Nesse exato momento, sua imaginação abre possibilidades infinitas a coloca em um estado de contínuo processo de transformação.

Ao experimentar-se com o meio ambiente a criança chega a níveis cada vez mais complexos de combinação. A atitude exploratória exercitada através das brincadeiras possibilita a organização de padrões perceptivos e conceituais que as crianças usam com a maior destreza ao interagir com seu meio. E é no exercício do corpo em movimento que o brincar rompe com as limitações desse mesmo corpo, numa aliança com a imaginação, permitindo o intercâmbio livre entre o sujeito e o objeto. Dentro dessa verdadeira dança, o Brincar se afirma como uma conduta pensante, produto de um complexo comportamento que tem origem no corpo.

Foi justamente compreendendo essa estreita e significante relação entre a linguagem do Brincar e do corpo, expressa na criança de uma forma única e unida que semeamos os primeiros “contatos” com os toques sutis aprendidos com o Professor Pethö Sándor, no Curso de Cinesiologia do Instituto Sedes Sapientiae.

Entendendo o “corpo” como o veículo sagrado, o receptáculo da vida e respeitando o mistério que ele abriga, nos colocamos a serviço de um caminho de contato com as crianças deixando que elas nos fossem dando as direções por onde nossas mãos devem tocá-las.

Em meio à atmosfera das brincadeiras o trabalho corporal foi surgindo para surpresa nossa, ocupando a cada dia um espaço especial dentro das nossas atividades diárias.

O modo rápido e contagiante de como as crianças assimilavam este tipo de abordagem corporal nos afirmou a necessidade e a receptividade do corpo em ser acolhido com TEMPO, RESPEITO e SUAVIDADE. A fome de um “con-tato” sutil cem o corpo se mostrou presente na medida em que, ao tocarmos uma criança, várias delas se aproximavam e pediam: “Agora eu”; “Depois sou eu”; “Quero mais”; De novo” e ali ficavam em silêncio, aguardando a sua vez.

Uma esteira sobre o gramado, uma sombra de árvore, a quietude da Natureza e o som de alguns pássaros cantando, juntavam-se àquela entrega mútua da criança e do adulto ao partilharem daquele momento de troca serena e profunda.

Foi, assim, em meio à atmosfera das brincadeira, que o trabalho corporal foi ocupando seu espaço.

Menino ou menina, do menor ao maior se alternavam nos pedidos de Massagem, incorporando-a como mais uma das possíveis brincadeiras do seu repertório.

Quando me encontrava com um número de três a quatro crianças à espera, pedia a uma outra criança que me ajudasse transferindo para ela o movimento de tocar o companheiro. Mais uma vez fui surpreendida pela prontidão com que das respondiam ao chamado, tanto a que ia receber como a que ia desenvolver o toque.

O fato de já haver experienciado no próprio corpo aquele tipo de trabalho e a atitude de “olhar” o companheiro recebendo o toque enquanto esperava a sua vez por certo propiciaram uma preparação especial, tal era a prontidão das suas mãos, o “gesto pronto” para desenvolver a massagem. Gesto este que se estendeu para dentro de suas famílias o que veio ocasionar o pedido de várias mães para o aprendizado desses toques. Há seis anos mantemos um curso aberto aos pais e mães de nossas crianças.

O significado positivo desse trabalho sobre as crianças é manifestado de várias maneiras. Escolhemos três histórias que trazem dentro delas momentos que espelham o alcance do trabalho com o corpo.

Um Toque – Uma história

Sobre a esteira deitado, um menino de quatro anos me aguardava.

Iniciamos o toque com rotações nas pequenas articulações dos dedos dos pés acompanhando o ritmo de sua respiração.

Ele balançava a cabeça de um lado para o outro, coçava os olhos, ora estirava a perna, ora a encolhia, até que aos poucos leves bocejos começaram a surgir. Seu olhar se tornou distante e seu corpo parecia agora colado ao chão, tal era sua soltura muscular. Um silêncio nos rodeou.

A certa altura ele falou:- Sabe que eu vou ser maior do que o meu pai? Eu vou ser do tamanho desta árvore.” E apontava um enorme pinheiro que se encontrava atrás de mim.

“Nossa! Disse-lhe. ” Você vai ser desse tamanho?”

“Sim”, afirmou ele, “vou ser desse tamanhão!” Novo silêncio.

Eu continuava desenvolvendo o toque nos seus pés.

Ele voltou a falar: – “Sabe, eu não vou ser até lá em cima da árvore não. Eu só vou crescer até ali.” E apontava para uma altura que representava a metade do pinheiro.

Ficamos em silêncio novamente.

Passado algum tempo, já quase terminando o toque ele voltou a falar:

– “Você sabe que todo mundo pensa que Deus é maior que tudo? Mas não é não!” Ele mesmo afirmou.

Brotou em mim uma pergunta e a faço:

– “Quem então é maior que Deus?”

– ” A vida, a vida é maior que Deus. A vida é tudo. Tudo é vida. Eu acho que a vida é que é Deus!”

Novo silêncio entre nós. Dessa vez tão intenso como suas palavras. Termino de tocar os seus pés, ele calmamente se levanta e segue seu Caminho em direção a uma outra brincadeira.

Outro toque – Outra história

“Depois sou eu”, dizia ela nos seus seis anos de idade, aproximando-se do local onde me encontrava iniciando o trabalho corporal com uma criança.

Sentou-se próxima à esteira, muito calma, aguardando a sua vez.

Ao chamado dos amigos para brincar, ela muito afirmativa respondeu: “Agora não, depois eu vou”, e ficou em silêncio observando o que eu fazia.

Algo ali estava acontecendo de muito significativo, uma vez que sua paciência esperando o momento em que pudesse atendê-la era incomum.

O tempo que ela permaneceu olhando as minhas mãos tocando outra criança certamente agia sobre ela como uma preparação, uma receptividade, uma abertura para o trabalho corporal que em seguida iríamos fazer.

Logo após a saída da outra criança, ela rapidamente se ajeitou na esteira e curiosamente fechou os olhos o que não é um gesto comum nas crianças dessa idade. Houve momentos em que cheguei a pensar que ela havia adormecido, tal era a sua quietude.

Ao terminar o toque que ela sempre solicitava, o “sopro na coluna” e o “sopro ao redor do umbigo”, ela abriu os olhos devagarinho como se estivesse chegando de muito longe, esboçou um sorriso misterioso e se espreguiçou parecendo uma criança pequena quando está acordando em paz.

“Você esta com sono?”, perguntei.

Ela sempre dizia: “Não, agora vou brincar!”

Porém, neste dia, seu corpo parecia não querer sair da esteira. Virava, revirava, até que conseguiu se sentar e olhando para mim, falou:

– “Você sabia que eu tinha um medo grandão?”

– “Que medo?”, perguntei.

– Quando eu estava na barriga da minha mãe, eu pensava que ia morrer lá dentro.”

– “Como você sentia isso?”

– “Tinha uma coisa me apertando, me esticando, parecia que eu estava secando. Eu ia ficar sequinha e ia morrer.

Fiquei em silêncio. Ela veio para o meu colo.

– “Ainda bem que eu nasci logo e não morri. A minha mãe foi quem morreu,”

Abracei-a.

– “Que bom que você está viva menina! E aquele medo grandão, por onde anda agora?”

– “Agora não tenho medo. Eu só tinha medo na barriga da minha mãe. Eu não queria morrer na barriga da minha mãe. Ia ser chato. Acho que minha mãe sabia que eu não queria morrer junto com ela. Eu queria viver. Agora eu tenho duas mães, uma que mora no céu e uma que mora na terra.”

Ela se levantou do meu colo e foi chamar as outras crianças para brincar de “Morto/Vivo”, brincadeira esta que há duas semanas ela pedia para brincar quase que diariamente.

Mais um toque – Outra história

Certa manhã uma menina de quatro anos se aproximou e disse:

– “Você faz uma massagem em mim? Quero tirar uma barata que está aqui dentro”, e apontava a região do coração com sua mão.

Esta criança desde que chegara de sua casa naquela manhã se mostrava inquieta entrando em atrito a todo instante com as outras crianças. Tudo que se propunha a fazer não lhe agradava, interrompendo pelo meio, o que não costumava ser uma atitude comum nela.

Coincidia que, naquele dia completava uma semana de ausência dos pais, que estavam viajando, tendo ela e os irmãos ficado sob a responsabilidade de empregados de confiança do casal.

Ouvi aquele pedido e surpresa pelo significado que ela estava dando á massagem voltei a perguntar:

– “Por que você quer fazer massagem agora?”

– Eu quero tirar a barata que está dentro de mim.”

Disse-lhe para pegar a esteira, colocá-la em um lugar sombreado no jardim, como comumente fazíamos e que aguardasse um pouco que logo eu estaria lá.

Concluí o trabalho que fazia de argila com uma outra criança e alguns minutos depois fui procurá-la, certa de que a essa altura ela já havia esquecido da massagem, tendo se ligado a alguma outra brincadeira pelo caminho. ‘

Qual não foi minha surpresa ao encontrá-la deitada calmamente na esteira à sombra de uma árvore, aguardando a minha chegada.

Sentei-me como de costume, iniciei o trabalho massageando seus pés. Perguntei-lhe:

-“A barata ainda está dentro de você?”

-“Está aqui dentro de mim”, disse ela com determinação, mostrando o coração.

-“O que será que ela está fazendo aí dentro?”

-“Está fazendo cócegas ruim, que eu não gosto. E todo mundo está brigando comigo hoje.”

-“Então, vamos lá”, disse eu, “vamos ajudar esta barata a sair daí de dentro.”

Ela disse: “Faça aqui”, e mostrava a barriga.

Fiz o primeiro toque, deslizando a mão suavemente em pequenas rotações no sentido horário ao redor do umbigo, ampliando a pressão e extensão do toque na parte superior, atingindo a região do diafragma.

Ao terminar este movimento, ela logo se virou de costas e disse: “Agora nas costas”.

Iniciei o trabalho com sopro sobre a coluna, subindo devagarinho sobre cada vértebra. No exato momento em que atingia a sétima cervical, ela se virou e disse:

– “Chega, já saiu, a barata já saiu.”

Levantou-se no prumo, leve como um passarinho e foi brincar com os amigos, passando o resto da manhã em paz.

Por mais uma semana durante o tempo de ausência dos pais, todas as manhãs ela chegava pedindo massagem.

Esta criança mostrou que seu corpo, através dos toques, registrou sensações de harmonia de ordenamento, uma vez que partiu dela a procura da massagem como um recurso para limpar um incômodo corporal produzido por um sentimento de insegurança ou mesmo “saudade”, causado pela ausência dos pais e configurado no corpo pela estranha presença de uma barata no coração.

A cada experiência com os toques sutis aprendidos com o Professor Sándor, aplicado nas crianças como “novas brincadeiras”, como me dizia ele, era concreto e visível o recondicionamento imediato do corpo físico através da ampliação da respiração, da harmonização do ritmo respiratório, da soltura muscular que cooperam para a criação de espaços novos que vão sendo abertos internamente onde, por certo, se alojam as indagações mais profundas que espontaneamente se manifestam ao receberem através do corpo, um acolhimento no TEMPO e no ESPAÇO.

Histórias como estas eu poderia continuar narrando por mais algumas páginas, confirmando a utilização dos Toques de Integração Físico Psíquica, como um trabalho que poderá vir a ser incorporado dentro das atividades de creches, escolas, hospitais e principalmente dentro do cotidiano da própria família desde que a natureza externa e interna sejam presenças reconhecidas e respeitadas.

Ao contemplarem as fotografias, as imagens sinalizarão na essência o significado dos toques. Estas fotos pertencem ao nosso acervo sobre o SER CRIANÇA e agradecemos a todas elas que continuam a afirmar com determinação e resistência o SIM Á VIDA, nos ensinando a cada dia novas possibilidades da expressão humana.

CASA REDONDA – CENTRO DE ESTUDOS (1983 – 1997)