“Depoimento apresentado durante homenagem póstuma a Pethö Sándor, realizada na PUC-SP em 30/04/92” – Rosa Maria Farah

 

“Quando sabemos qual é nosso propósito, o trabalho da Alma o realiza da melhor maneira possível através do nosso corpo”.

(Sônia Café, em “Meditando com os Anjos”)

No futuro, o Prof. Sándor certamente será lembrado como o criador da Calatonia, ou seja, pela maneira muito própria e especial com que propunha a utilização psicoterápica das técnicas de Integração Psicofísica, aliada aos conceitos da Psicologia Analítica – Em síntese, é assim que pode ser descrita a metodologia de trabalho por ele desenvolvida de modo tão especial, ao longo de seu trabalho constantemente criativo e renovador.

Mas certamente, não apenas eu, como todos os colegas que tiveram o privilégio de um contato direto com os seus ensinamentos, seriam unânimes em afirmar que a orientação que ele nos forneceu foi muito além do nível metodológico e conceitual, por mais importantes e significativas que tenham sido suas contribuições neste sentido.

O que pretendo ressaltar aqui – tal como pude apreender – são alguns aspectos da sua maneira de trabalhar (e talvez também de viver), expressas em paralelo às suas proposições. Aspectos estes que me parecem terem sido fundamentais tanto para o desenvolvimento das suas idéias, quanto para a forma com que nos transmitia seus ensinamentos Refiro-me, por um lado ao caráter pioneiro de suas propostas de trabalho terapêutico, e por outro, à postura por ele adotadas enquanto professor. Tal postura transparecia tanto na sua maneira de conduzir os cursos e grupos de estudos, quanto nas orientações que nos fornecia nos contatos individuais – para os quais sempre encontrava um espaço, mesmo em meio à sua intensa programação de atividades.

Através desse seu “modo de ser” é que Sándor nos transmitia seu modelo de atuação pessoal e profissional. Muito mais portanto, através de sua própria conduta, do que por meio de qualquer “discurso” a respeito. No entanto, ao longo do tempo, nós, seus alunos, pudemos pouco a pouco identificar a coerência desse modelo com os princípios mais atuais e inovadores das condutas em Psicologia.

Não é simples a tarefa de colocar em palavras uma descrição daquele seu modo tão peculiar de ser e atuar. Por isso mesmo vou iniciar por relatar alguns aspectos mais objetivos da sua história profissional, para nos servirem de referência mais concreta a respeito.

Quanto ao pioneirismo de sua forma de trabalho terapêutico, bastaria lembrar que ele Já propunha a atenção para com as diversas formas de trabalho corporal na psicoterapia (bem como nas áreas afins) muito antes do surgimento do interesse por tais metodologias em nosso meio. Nesse sentido, foi pioneiro entre nós tanto como terapeuta quanto como “formador” de novos profissionais.

Como registro deste fato, podemos lembrar a data de origem do conhecido livro “Técnicas de Relaxamento”(1), editado e reeditado seguidamente nos últimos anos pela Ed. Vetor de São Paulo: Sabemos que a obra que deu origem à esta publicação foi o “Boletim de Psicologia”(2) onde foram editados os registros relativos aos “Cursos sobre Relaxamento”, realizados em 1969/70 na “Sociedade de Psicologia de São Paulo”, uma vez que esse boletim era o seu órgão de divulgação.

O próprio Sándor elaborou a maioria dos artigos ali publicados, acrescidos de outros, escritos por profissionais que já de algum tempo vinham desenvolvendo formação sob sua orientação. Foi neste mesmo Boletim ainda, que Sándor apresentou pela primeira (e única) vez uma descrição da seqüência original dos toques da Calatonia.

Os trabalhos ali publicados já traziam, como característica mais marcante, a apresentação de uma proposta de integração das técnicas de Relaxamento (bem como de outras formas de trabalho corporal) ao trabalho psicoterápico. Refletia-se ali também, a sua orientação no sentido da adoção daquela que hoje se denomina uma “visão holística” em Psicologia. Pode-se ainda perceber nessa mesma fonte sua abertura para a hoje tão preconizada proposta do “atendimento multidisciplinar integrado”, uma vez que os cursos, embora enfatizando os aspectos psicológicos do tema, eram abertos à vários outros profissionais da área da saúde.

Infelizmente, nas edições hoje acessíveis desse livro foi excluída a apresentação da obra original, elaborada pela Professora Dra. Mathilde Neder – da PUC-SP – que integrava a edição do mencionado “Boletim”. Nesta apresentação está bem descrito o caráter pioneiro do evento que deu origem à esta publicação. Publicação esta, ainda, que veio a se tornar em uma espécie de texto básico da área, ainda hoje essencial para os nossos alunos.

Por esta mesma época (1970/71) o Prof. Sándor ministrava a cadeira de “Psicologia Profunda para o Curso de Psicologia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, da PUCSP. Particularmente atuava como psicoterapeuta ao mesmo tempo que realizava, em seu consultório (gratuita e seguidamente) cursos de introdução às Técnicas de Relaxamento para os alunos interessados.

Não nos cobrava por estes cursos, nem tampouco fazia qualquer divulgação dos mesmos. Nós – seus alunos – simplesmente ao sabermos de tal possibilidade pelos próprios colegas, nos organizávamos em grupos, e ele então nos recebia para a realização do trabalho.

Já desde esta mesma época circulava entre nós a clara noção de que a decisão de participar de tais grupos deveria ser “bem pensada”: não precisávamos nos preocupar com o fator financeiro; mas por outro lado, “sabíamos” (a partir de nossa experiência como seus alunos na faculdade) que a assiduidade, pontualidade, bem como a responsabilidade da nossa participação seriam efetivamente “cobradas”, ainda que sem palavras!

Mas o envolvimento de Sándor com esta área de atuação e pesquisa Já vinha acontecendo desde muito antes destas datas, conforme ele mesmo relata em um dos artigos da obra citada acima. A idealização da Calatonia surgiu a partir de suas observações durante os trabalhos que realizou nos hospitais da Europa (como médico da Cruz Vermelha) ainda durante a segunda guerra mundial(3). Conforme o seu próprio relato, seus trabalhos nesta área no Brasil tiveram inicio por volta de 1949, ano em que chegou por aqui.

Conforme sabemos, é bem mais recente a “descoberta do corpo” dentro do âmbito da Psicologia em nosso meio, bem como a atenção dada aos vários temas correlatos. Mas esses assuntos já desde o início mereciam destaque nas aulas de Sándor. Podemos citar como exemplos:

a) O interesse pelas técnicas e conhecimentos oriundos da tradição oriental – e suas respectivas fundamentações filosóficas e religiosas.

b) O interesse pelas várias formas de trabalhos ditos “alternativos” na área da saúde.

c) O interesse por Reich, e a Bioenerqética, bem como por vários outros enfoques do trabalha corporal aplicado à Psicologia.

d) O interesse pelos enfoques hoje denominados “holísticos”, de compreensão dos fenômenos humanos.

e) A ênfase em buscar muito mais os pontos de convergência do que acirrar as dicotomias entre as diferentes abordagens psicológicas, etc.

Em essência: este conjunto de idéias e posturas sobre maneiras mais inclusivas de se estimular a integração psicofísica – ainda hoje tidas como inovadoras – já permeavam as condutas adotadas por Sándor nos primeiros tempos de seu trabalho entre nós. É bom que se ressalte uma vez mais: tudo isto era muito mais presente em sua prática do que em seu discurso propriamente dito. Até porque que suas falas raramente poderiam ser caracterizadas como “discursivas”. Ao contrário, especialmente naqueles primeiros tempos, Sándor era um professor de que marcava sua forma de expressão muito mais pela precisão, parcimônia e objetividade.

Na verdade, nos mesmos primeiros tempos (quando ainda lecionava na PUC-SP, por exemplo) sua figura nos inspirava um misto de admiração e respeito, entremeado por um certo temor: sua repreensão à algum aluno que chegasse com atraso à aula, por exemplo, era algo que todos fazíamos o possível para evitar… Coisa rara entre jovens universitários do final dos anos 60, com toda a irreverência que predominava em nossa conduta como estudantes !

Mas era assim que ele conseguia que nos portássemos: em suas aulas ninguém se atrevia a acender um cigarro, nem tampouco a sair para dar uma ‘voltinha’, e depois regressar despreocupadamente, como era comum fazermos em outras aulas. Sabíamos que nos seria atribuída falta, ou pior ainda: uma das suas célebres “broncas”! Por outro lado, se um de nós pedisse sua atenção para alguma dúvida sobre os complexos temas de suas aulas, estava sempre pronto a nos atender.

Mais tarde, já nas aulas de Cinesiologia do Sedes, durante o pequeno intervalo do café a cada semana formava-se uma ‘fila’ ao seu redor: levávamos à Sándor nossos pedidos de esclarecimento, e/ou ‘dicas’ para o encaminhamento de casos e trabalhos em andamento, aos quais invariavelmente sempre dava algum retorno. Quando o assunto fosse mais complexo ou delicado, ou ainda quando partia de nós mesmos a proposta de uma conversa particular, era comum que respondesse: “O que estará fazendo 6a, feira das 12:00 às 12:15 h.?” Claro que muitas vezes remanejávamos outros compromissos para poder estar em sua sala no horário proposto, pois bem sabíamos que aqueles 15 minutos valeriam por uma “sessão”, ou por uma hora de supervisão…!

Se em alguma ocasião Sándor estendia-se mais em alguns de seus comentários, (especialmente durante as leituras grupais) assim fazia para nos fornecer informações paralelas e ampliadoras, como tão bem lhe era possível fazer, por conta de sua ampla erudição; bem como pelo acúmulo das experiências de vida de um observador atento ao mundo ao seu redor.

Essa mesma característica de suas falas podia ser percebida ainda nos comentários com que respondia às nossas dúvidas, por exemplo, diante de um sonho para nós obscuro: costumava nos oferecer em resposta, geralmente, não apenas uma “interpretação”, mas sim uma série de colocações com as quais estimulava nossa própria reflexão à respeito. Nestes momentos suas colocações muitas vezes nos surpreendiam, pois poderiam estar baseadas em fontes tão variadas quanto:

a) Algum antigo costume dos camponeses europeus, ou de alguma tribo primitiva;

b) Na análise do enredo de algum filme ou obra literária;

c) Até mesmo em um ritual de iniciação de uma civilização extinta

d) Passando por trechos de canções folclóricas brasileiras, ou alguma citação da obra de Mozart, ou outro clássico musical, etc.

Assim, nos últimos tempos, durante as atividades do curso de Cinesiologia, após a apresentação de determinados trabalhos grupais já não nos surpreendíamos se Sándor mencionasse que aquele movimento ou manobra específica correspondiam a uma adaptação de tal ou qual dança ritual, originária de um determinado povo da antigüidade, realizado em certas festividades.

A sua maneira de coordenar as atividades das leituras realizadas em grupo, também era bastante própria e pessoal. A nossa participação em tais grupos acabava por ter sobre nós um efeito paralelo à assimilação dos conceitos contidos nos textos em pauta, efeito esse semelhante à uma espécie de “lapidação” de algumas de nossas posturas intelectuais:

A maioria de nós, componentes de tais grupos, vínhamos de uma formação universitária onde a chamada “atitude critica” foi valorizada e altamente estimulada. Vivemos, com toda a sua intensidade, uma espécie de hiper-estimulação intelectual em detrimento do desenvolvimento de outras formas possíveis de apreensão do “conhecimento”. Foi nestes grupos, sob sua orientação que pudemos perceber, pouco a pouco, a diferença entre uma atitude efetivamente reflexiva diante de um texto e/ou informação, e aquela outra com que geralmente chegávamos ao grupo. Atitude esta que se expressava muitas vezes na forma de um “criticismo” exacerbado, e era portanto bem mais próxima de uma espécie de “animosidade” bem pouco construtiva… Em especial se considerarmos a quantidade de mulheres participantes!

Em seus grupos de leituras pudemos perceber – observando sua forma de “ler” nas entrelinhas – como nos seria possível (e bem mais útil) realizar uma apreensão ‘inclusiva’ das várias nuanças possíveis na interpretação da intenção do autor. Até mesmo as possíveis omissões ou enganos que nos fazia perceber em determinado texto, eram mencionadas muito mais como pistas com que apontar o caminho para um entendimento mais adequado do assunto em pauta, do que como o apontar de um “erro” do autor.

Manifestava esta mesma delicadeza natural, sempre que lidava com o material que fosse fruto do trabalhar de alguém: quer se tratasse do texto de um autor renomado, ou um dos relatos dos nossos casos, dúvidas, e/ou solicitação de orientação sobre a conduta a adotar em determinado atendimento. Nestas ocasiões acrescia ainda, às suas falas, uma dose extra de paciente atenção para com as nossas limitações.

Isto não significava, no entanto, que em certos momentos Sándor não discordasse do próprio Jung, ou de qualquer outro autor que estivéssemos estudando. Nem que não nos oferecesse um modelo bem definido de atuação, quando nele buscávamos uma orientação para nossas hesitações, fossem elas de ordem pessoal ou profissional. Nesses momentos aliava à firmeza de suas posições e opiniões (até mesmo bem diretivas às vezes) à uma atitude de respeito pela forma de ser e de pensar do “outro”.

Whitmont entre outros junguianos – em “Retorno da Deusa” – nos fala sobre o surgimento de um novo estágio de manifestação da consciência: Este novo estágio, “feminino”, de manifestação da consciência, segundo ele, caracteriza-se do seguinte modo:

“A forma feminina da consciência é global e orientada para os processos. É funcional e não abstrata e conceitual. Está isenta da estrita dicotomia do dentro-fora ou corpo-mente.”

“Não é heróica nem rebelde, não tem inclinação para lutar contra oposições. Em vez disso, existe no aqui e no agora e no fluxo do infinito.”

“Expressa a vontade da natureza e das forças instintivas e não a atitude voluntariosa de uma pessoa em particular.” (4)

Muito mais do que apenas propor e/ou nos ensinar como utilizar este ou aquele “trabalho corporal”, Sándor nos estimulava a caminhar no sentido desta expansão de consciência. E assim podermos nos aproximar de nosso “propósito” mais autêntico, tanto do ponto de vista pessoal, quanto profissional. Neste contido, destacava o trabalho com o corpo, na medida em que este recurso metodológico realizasse a função de “liberar os canais” para que tal propósito pudesse expressar-se e realizar-se, tão livremente quanto possível.

Foi desse modo que ficou registrado em mim o contato com Sándor – o professor e terapeuta. Creio que o método de trabalho que desenvolveu – e tanto se empenhou em nos transmitir – foi como que uma decorrência natural do seu modo de lidar com o humano: em si mesmo e em sua relação com as pessoas em geral, incluindo seus alunos. Fosse como Terapeuta ou como Professor, sua maneira de ser naturalmente realizava aquilo que é expresso em um dos pequenos trechos de “Meditando com os Anjos”:

“Educar é permitir que a sabedoria latente da Alma se manifeste em todos os seres, ensinando-lhes a viver.”(5)

Referências Bibliográficas:

(1) Sándor, P. (e outros), “Técnicas de Relaxamento” – Ed. Vetor – São Paulo; 4ª ed. 1989.

(2)”Boletim de Psicologia” -. Publicação Sociedade de Psicologia de São Paulo – Vol. XXI, Janeiro a Dezembro de 1969, reedição dos números 57 e 58.

(3) Ver relato sobre a “Calatonia”, na ob. cit. em 1. pág. 92 e seguintes.

(4) Whitmont, E . C., “Retorno da Deusa ” – Ed. Sumus – São Paulo – 1991. Pág. 61.

(5) Café, S., “Meditando com os Anjos” – Ed. Pensamento – São Paulo – 1992.