“Trabalho corporal em equipes esportivas: Mais um espaço de intervenção psicológica” – Kátia Rúbio

 

(Revista “Boletim Clínico” no. 3 )

A dinâmica dos grupos esportivos tem sido um grande desafio para técnicos, atletas e profissionais que estudam o esporte. Isso porque muito já se testou, avaliou e analisou atletas individualmente, buscando-se perfis ou padrões que pudessem oferecer subsídios para se chegar a níveis ótimos de performance.

Trabalhando como psicóloga de equipes esportivas, foi possível observar que esse modelo apresentava algumas lacunas. Isso porque a representação social que o atleta tem do psicólogo é uma mistura de fantasia – alguém que cura – e de assombro – aquele que desvenda os mistérios da alma.

No contexto esportivo, esse fato ganha novas proporções. Submetido a uma rotina desgastante de treinos e jogos o atleta – este herói da modernidade – se vê envolvido por questões como a ausência de contato com a família, super exposição na mídia e a impossibilidade de admitir – para si e para o público – suas fragilidades, angústias e incertezas, posto que ainda que uma figura mítica, nosso herói contemporâneo não habita o Olimpo nem bebe da ambrosia com os deuses, mas estabelece relações afetivas e sofre com os transtornos que cerca a vida de um atleta que também é cidadão brasileiro.

Longe da máxima “o importante é competir”, o esporte de alto rendimento é, na atualidade, a instituição que movimenta as maiores somas de dinheiro do planeta, transforma o lazer em trabalho alienante e submete o corpo do atleta a um uso contínuo resultando em inúmeras contusões e na interrupção prematura de grandes talentos.

O trabalho de preparação física é quase sempre feito para um conjunto de pessoas desconsiderando as características individuais do grupo, resultando em sobrecarga para uns e em déficit para outros. Sendo depositada nas mãos de alguém, a incumbência da preparação física é, para o atleta, um trabalho desgastante, muitas vezes desprovido de sentido, assemelhando-se a um castigo. Diante disso, o atleta vai se distanciando da responsabilidade do conhecimento de seu corpo e perdendo a consciência de seus limites, passando a executar exercícios e movimentos mecanicamente, apartando-se das reações e sensações de seu próprio corpo.

Tendo alguns esportistas já se submetido aos inúmeros testes psicológicos, em outras ocasiões a possibilidade de se submeter a eles, novamente, chega a causar assombro. A razão desse comportamento reside no fato de muitos terem oferecido sua subjetividade, cognição e vivência, numa situação cercada por sigilo e garantida por um código de ética e virem essas informações ter um fim nas mãos de pessoas inadequadamente preparadas para decifrá-las, ou pior, de outras inescrupulosas que não se furtam a divulgar as fontes e o sujeito dos dados. Ou seja, ainda que apenas se inicie, o uso da psicologia no esporte já se depara com graves questões que chegam a causar resistência em alguns e até mesmo recusa de outros.

Mas esse estudo se presta a uma análise de fenômenos que ocorrem em equipes esportivas e não ao papel que o psicólogo desempenha nelas.

Quando falamos em times ou equipes esportivas não estamos nos referindo apenas a um conjunto de indivíduos que se agrupam por dimensões temporais e espaciais, mas sim ao complexo conjunto de fatos objetivos e subjetivos que torna um grupo efetivo e desejoso de alcançar suas metas, sejam elas uma atuação adequada em uma partida, a vitória ou apenas uma boa colocação em um campeonato.

Autores como Maters e Peterson (1976), Lenk (1976) e Simões (1996) têm postulado que uma equipe esportiva é mais que a soma de valores individuais e que o time com melhor performance não é composto, necessariamente, pelos melhores jogadores individuais, representando que não é a qualidade individual o de que se necessita, somente, para formar uma equipe com probabilidade de êxito. O mais importante é a capacidade de coordenação de cada um dos valores que entram em jogo, uma vez que o resultado somente se dará com a soma desses valores.

Exemplo disso são os jogos amistosos em que o time campeão da temporada joga contra a seleção dos melhores jogadores desse campeonato, escolhidos através de critério estatístico. Neste ano de 1997, o campeão da Super Liga de Vôlei Masculino – Report/Suzano – venceu por um placar incontestável (3×0) um time de 12 atletas comandado por três técnicos. Se número e colocação estatística fossem indícios de eficiência e eficácia, talvez o placar fosse outro.

É claro que outras questões estão envolvidas nessa dinâmica, ou seja, não basta apenas um atleta trabalhar contra o grupo para que os objetivos não sejam alcançados, além do que essa atitude nem sempre é uma conduta consciente. Se o grupo como um todo está identificado com a tarefa proposta, esforços no sentido oposto são identificados, isolados e trabalhados em favor da própria equipe. Isto, porém, só pode se dar quando o grupo se conhece através de suas partes – o auto conhecimento, seja do atleta ou membro da comissão técnica – e de seu todo – o conjunto em movimento, no momento da atuação.

Aquilo que acabamos de designar enquanto partes é, na verdade, cada membro do conjunto, cada indivíduo na sua totalidade. Quem sou, de onde vim e para onde vou são perguntas tão antigas – e de difícil resposta – que chegaram a servir ao deus Apolo, onde a Pítia expressava seu oráculo. Mesmo passados os séculos, e com todo o desenvolvimento tecnológico alcançado nos últimos anos, essas perguntas ainda esperam por resposta. Quem são essas pessoas que dispostas a levar vida tão regrada e árdua, que apesar de toda a exposição pública que suportam, experimentam longos períodos de solidão e que possuem corpos vigorosos mas que nem sempre encontram a representação de tal imagem em seu inconsciente?

Tentar justificar uma dessas respostas objetivamente, fosse através de questionário ou de alguma nova máquina invasiva, seria um esforço injustificado quando já dispomos de alguns recursos que têm alguns anos de vida e que recebem a denominação de projetivos.

Sabendo do papel e da importância que o corpo tem para o atleta, optamos em nos aproximar da primeira pergunta da esfinge quem sou através da apercepção da imagem corporal. Que representação tem de si alguém que corre, salta, ataca, defende e executa movimentos nem sempre percebidos mas quase sempre comandados por alguém cuja função recebe o nome de preparador físico – e não preparador corporal – e que raramente trabalha o corpo do outro com sensibilidade e percepção do conjunto envolvido?

Estava dado o primeiro passo rumo à subjetividade – de si e do outro – adentro.

A imagem corporal tal como Schilder (1980) concebeu não é apenas construída da experiência de percepções cinestésicas, mas também de todas as imagens, sensações e emoções dos momentos por que passa o corpo ao longo da existência, constituindo o substrato inconsciente das representações corporais.

Partindo desse pressuposto, levantamos a hipótese de que a construção da imagem corporal individual poderia interferir na criação e desenvolvimento de uma imagem corporal grupal, aproximando-se daquilo que Pichon-Riviére (1995) chama de formação de vínculo grupal.

É fácil entender por que parti de Schilder para falar de corporeidade, mas como e por que juntá-la a Pichon-Rivière? Porque ele afirma que o grupo é um espaço de aprendizagem, um novo espaço didático que abarca três conceitos: informação, emoção e produção e coloca a importância do corpo na compreensão dessa dinâmica, dizendo que o esquema corporal se conforma através de senso-percepções que vêm do próprio corpo como também do corpo do outro, num verdadeiro processo de construção, reconstrução, ruptura e nova construção.

Mas passemos à proposta de trabalho. Durante o ano de 1996, acompanhei uma equipe de voleibol masculina de alto rendimento, ou seja, profissionais do esporte, de um grande clube de São Paulo. É necessário caracterizá-la como tal na medida que esse dado faz toda a diferença para uma equipe amadora.

Enquanto profissionais esses atletas treinam em dois turnos diários: usualmente das 9 horas ao meio-dia e das 16 às 19 horas. Todos os dias, na parte da manhã, fazem condicionamento físico com uma carga intensa de musculação e corrida. Somado a isso estão os jogos que podem acontecer duas ou três vezes por semana, dependendo do campeonato, sendo que um deles acontecerá, com certeza, num final de semana. Quando entrei para a equipe o campeonato ainda não tinha começado e, apesar disso, alguns atletas já demonstravam sinais de fadiga.

A primeira intervenção foi uma entrevista individual que objetivou conhecer um pouco da trajetória de cada um dos atletas até o presente, no que se refere ao esporte, às motivações para estar naquele clube e não em outro e as expectativas em relação àquele grupo. Feito isso, começamos o trabalho com o grupo propriamente dito – atletas e comissão técnica.

A primeira sessão foi o primeiro contato com uma proposta que mexia com o corpo de uma forma diferente daquela que eles todos estavam acostumados a lidar. Trabalhamos respiração, movimento sutil, visualização e por fim, um desenho da figura humana e outro do grupo. Foi interessante perceber, logo de saída, que parte dos desenhos do grupo não era compatível com aquilo que havia surgido nas entrevistas individuais, ou seja, no verbal o discurso era de união, de despreocupação com a posição na equipe e de respeito. Os desenhos, porém, apontaram para uma preocupação demasiada consigo próprio dentro do grupo, a desunião caracterizada na formação de panelas e no ‘cada um por si’ e uma consciência da distância entre o falar e o fazer. Essa primeira sessão somada a alguns testes – sociometria e POMS – possibilitaram um diagnóstico individual e grupal da equipe. Cruzando esses dados, não foi preciso muito tempo para ver que o trabalho que tínhamos pela frente exigia uma mistura de Hércules e Psiquê, ou seja, a força de um e a paciência da outra, mas, e talvez mais importante, a determinação de ambos.

Passada a desconfiança inicial de uns e a euforia de outros, o trabalho de intervenção psicológica foi ganhando identidade: favoreceu a recuperação daqueles que tinham se contundido, permitiu o conhecimento de outras propostas de atuação para os momentos de maior estresse e desgaste físico e ofereceu conforto para os que tinham problemas familiares que interferiam no rendimento esportivo.

À medida que as semanas – e ao longo delas as sessões – foram passando fomos trabalhando com relaxamento, exercícios de percepção e movimentos sutis, acompanhados das sensações, imagens ou outras situações desencadeadas por esse tipo de atividade. As respostas a cada sessão eram variadas e inesperadas. Parecia que nenhum modelo teórico ou prático era 100% aplicável ao grupo, tamanha era a inconstância das respostas. Passei a encarar cada sessão como uma nova proposta que poderia trazer alguma nova resposta ou não. Apesar da inconstância, o grupo apresentou uma curva ascendente no plano pessoal e grupal, tendo sido, este momento, apreendido na aplicação de um teste sociométrico. Ali pôde-se ver que, de fato, o núcleo do grupo estava constituído, e que aqueles que, num primeiro momento, eram tidos como amigos e possíveis líderes do time depois dessas 9 sessões, através das dinâmicas e dos trabalhos corporais, já não correspondiam à confiança que o grupo lhes depositara num primeiro instante.

Não foi preciso muito tempo para perceber que um único modelo – fosse ele da psicologia ou do esporte – epistemológico ou interventivo, não seria suficiente para abarcar toda a complexa constelação de fatos que ocorrem durante um campeonato profissional. Foi necessário, sim, lançar mão de diversos recursos tanto das áreas já citadas como da sociologia, da antropologia e, por que não, da minha própria experiência enquanto atleta. Ainda que Tani (1996) diga que “não basta adotar uma abordagem, é preciso praticá-la, aperfeiçoá-la e isso se dá conduzindo-se pesquisas qualitativamente aceitáveis”, percebemos ao longo de todo o processo desenvolvido neste trabalho que a convergência das áreas de conhecimento não pode ser apenas um sonho teórico, mas tem de se realizar enquanto uma disposição concreta, tanto no sentido da melhor qualidade de vida do atleta – mesmo tendo como modelo o esporte de alto rendimento – quanto na transformação dos dados desse cotidiano em produção acadêmica.

Sabemos que ainda esse modelo não existe e, portanto, urge que criemos condições para que a demanda das equipes seja satisfeita sem que percamos, contudo, a consciência crítica de que caminhamos por uma trilha que ainda não é uma estrada, mas que serve de traçado para que, em breve, ela se concretize em bases sólidas. Qual o seu fim? Seria temeroso afirmá-lo, afinal, uns procuram a estrada sabendo onde querem chegar, outros a tomam com o intuito de descobrir pelo caminho se o final é seu objetivo ou tão somente se aquele foi um meio para uma descoberta que vai em outra direção.

Bibliografia:

Lenk, H. Top Performance Despite Internal Conflict: an Antithesis to a Functionalists Proposition. In: C. A. (ed.) Psychology of Sport. Palo Alto: Mayfield Company, 1976.

Masters, R.; Peterson, J. Group Cohesiveness as a Determinant of Success and Member Satisfaction in Team Performance. In.: C. A. Fisher (ed.) Psychology of Sport. Palo Alto: Mayfield Publishing Company, 1976.

Pichon-Rivière, H. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Shilder, P. A Imagem do Corpo. As energias constitutivas da Psique. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Simões, A.. C. Ideologia de Liderança no Esporte: uma Visão do “Ideal Próprio” dos Técnicos e “Real Equipe” dos Atletas. São Paulo, 1996. Tese (Livre Docência), Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo.

Tani, G. Cinesiologia, Educação Física e Esportes: Ordem emanente do caos na estrutura acadêmica. Revista de Divulgação Científica do Mestrado e Doutorado em Educação Física. V.1, n.1. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1996.