“Cinesiologia Psicológica – Integração Psicofísica” – Fernando Nobre Cortese

 

Introdução:

Nossa abordagem, criada e desenvolvida pelo Dr. Petho Sandor (1916-1992), médico e psicólogo húngaro radicado no Brasil desde 1949, fundamenta-se em uma visão do ser humano como um todo integrado corpo/mente, aproximando-se do que hoje se denomina visão holística. Tenta-se ainda superar a falsa dicotomia herdada do cientificismo mecanicista que dominou a ciência e cultura ocidentais após o renascimento. Nossa postura filosoficamente encontra fundamentos na Antigüidade Clássica, e na filosofia oriental.(1) Modernamente, a Física ocidental realizou um enorme salto qualitativo na teoria do conhecimento, ao provar que a redutiva dualidade matéria/energia, ou corpo/mente, ou tempo/espaço, ou sujeito/universo é nada mais do que uma abordagem oriunda da percepção do observador e, portanto, condicionada e limitada pelos seus sentidos e sua consciência.(2)

Esses fundamentos filosóficos e epistemológicos estão presentes na obra teórica e prática de C.G.Jung. O conceito de inconsciente coletivo universaliza o homem e liberta-o das limitações dos parâmetros da consciência egóica, abrindo novas dimensões espaciais e temporais. A postura de Jung, calcada também na Fenomenologia, busca escapar dos condicionamentos mentais pré-estabelecidos, numa relação mais integral com paciente e com o conhecimento. “Tento, tanto quanto possa, não ter idéias pré-concebidas e não usar métodos já prontos e ter a idéia de que, eu mesmo, determinarei meu método; procederei da forma como sou.”(CGJ)

Podemos citar: Sócrates – “Conhece-te a ti mesmo”; Platão – “A idéia origina o ser”; Heráclito – “Tudo flui…Tudo provm do Logos”; entre os egípcios, Hermes Trimegistros – “Sob as aparências do Universo, do Tempo, do Espaço, e da Mobilidade, está sempre encoberta a Realidade Substancial: a Verdade Fundamental”- “O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima”; para os orientais “A unidade de vida e consciência é o Tao” como mostra Jung em “O segredo da Flor de Ouro” (2)

Sándor assumia a visão de homem e postura de Jung. Ao já conhecido trabalho verbal com os conteúdos psíquicos, acrescentou o trabalho corporal. Jung, embora não trabalhasse corporalmente os pacientes, utilizava com liberdade técnicas como pintura, música, extrapolando padrões fixos, “setting”, e horários.

Encontramos, porém, em Jung muitas citações que mostram como em sua observação da dinâmica psicológica, o dinamismo corporal está presente, e desafia nossa ciência atual a integrá-los. “Corpo e psique são os dois aspectos do ser vivo, isso é tudo o que sabemos. Assim prefiro afirmar que os dois agem simultaneamente, de forma milagrosa, e é melhor deixar as coisas assim, pois não podemos imaginá-las juntas. Para meu próprio uso cunhei um termo que ilustra essa existência simultânea; penso que existe um princípio particular de sincronicidade ativa no mundo, fazendo com que os fatos de certa maneira aconteçam juntos como se fossem um só, apesar de não captarmos essa integração”.(1)

Wilhem Reich, de onde provém também parâmetros para nossa abordagem, localizava o psíquico no corpóreo, sendo o toque corporal fundamental em seu trabalho de diluição das couraças musculares e de caráter e liberação da energia reprimida.

Em J.H.Schultz e seu Treinamento Autógeno, Sandor resgatou a idéia da “psicoterapia organísmica” e do “recondicionamento físio-psíquico”. Como Sandor, Schultz desenvolveu com pacientes de um hospital durante a guerra formas práticas de atuar sobre o organismo fisiopsíquico facilitando o reequilíbrio e reorganização desse organismo em um ritmo mais integrado. Enquanto Schultz utilizou estímulos sonoros verbais para conseguir essa “comutação” de estado fisiopsíquico, Sandor desenvolveu estímulos cutâneos para o mesmo fim – a Calatonia.(2)

Nosso trabalho corporal visa, em várias dimensões, reintegrar o paciente consigo mesmo. Em primeiro lugar, o trabalho corporal reconecta o homem com sua natureza mais imediata , o corpo físico, origem do eu corporal, fornecendo sensações e informações que orientam o indivíduo se eles as observa adequadamente. Nesse sentido, o trabalho corporal atua como um instrumento de profilaxia da saúde, permitindo a reorientação do cuidado consigo.

Nas formas em que atuamos – calatonia, reajustamento dos pontos de apoio, toques sutis – o trabalho proporciona uma peculiar comutação fisiopsíquica que conduz a um estado alterado de consciência, uma espécie de mudança na faixa de funcionamento do ego na vigília cotidiana, com sensações e imagens próprias desta outra faixa. Isto permite o experienciar de conteúdos distintos dos habituais. Essa vivência ajuda no descondicionamento do ego, no ultrapassar aquelas categorias de pensamentos, sentimentos e sensações padronizados e inculcados pela cultura de massa em que estamos envolvidos. Há aqui uma possibilidade de contato mais profundo e autêntico com aspectos do nosso Eu inconsciente, o centro da personalidade chamado Self por Jung.

Essa reconexão é fundamental para que o homem possa orientar seu trajeto de individuação no sentido de realizar o potencial presente no Self, no Si Mesmo, encoberto e distorcido em nossa cultura pelos condicionados e desequilibrados desejos e aspirações do ego. O ego quer realizar-se mas o Self quer realizar-SE, isto é, cumprir a destinação daquele organismo individual de participar harmoniosa e integradamente dAquele Organismo maior de que faz parte. A psique consciente do homem atual padece de uma deformação característica de nossa cultura – a inflação do ego – que exorbitando sua função original almeja controlar e determinar o processo do Ser.

Essa é uma grave ilusão – o homem não pode controlar a Natureza, física ou psíquica – nem mesmo pode compreendê-la totalmente – ele é parte dela e funciona de acordo com suas leis – como disse Jung, o inconsciente é que determina se vou conseguir pronunciar(ou escrever) a próxima palavra. Essa ilusão do homem atual tem sérias conseqüências – a Natureza física e psíquica ressente-se de sua ação unilateral e predatória, e mostra os desequilíbrios resultantes.

Essa reaproximação do paciente com sua Natureza é propiciada por vários elementos. Deitar-se, despojar-se das roupas, fechar os olhos, já configura simbólica e fisiológicamente uma alteração do ritmo de funcionamento corpóreo e psíquico. Entregar-se ao toque proposto e deixar as percepções serem vivenciadas permite a experiência dos conteúdos das camadas mais interiores. E o estímulo do toque, ao trazer descontração muscular, reequilibro das funções respiratória, circulatória e outras, complementa a criação do campo fisiopsíquico propiciador dessa experiência.

O tipo de toque que utilizamos busca essa característica não condicionada, não habitual, mais arcaica – por exemplo, toques nas plantas dos pés ou ao longo do coluna vertebral – bem como configurações grupais primitivas, que evocam o arquétipo – o círculo, as mãos dadas, a dança, a emissão de sons primordiais(A).

O campo fenomenal onde se dá o trabalho corporal é criado pela interação terapeuta/paciente, constelando o arquétipo de cura e configurando um “vaso hermético” onde a energia fisiopsíquica mobilizada operará as transmutações e transformações em ambos.

A terapia organísmica necessita de uma atitude interna do terapeuta de entrega ao processo e soltura em relação a idéias e intenções pré-concebidas. Também ele tem que dar-SE. O que ocorre é um processo que confronta, intercambia, integra e transcende os dois, terapeuta e paciente, ao constelar o terceiro ponto, aquela energia de síntese que provem do Eu inconsciente – Self.

O terapeuta move-se mais no eixo sensação/intuição, ao observar seu paciente, ouvi-lo com a ponta dos dedos e deixar que as impressões vindas do inconsciente através da função intuitiva configurem o trabalho a ser realizado. Pensamentos e sentimentos, demais condicionados socialmente, participam menos nesse momento e mais na elaboração posterior.

O corpo revela e desvela o universo interior através do toque. Atua o sistema nervoso vegetativo, ou autônomo(isto é, independente da consciência). “Há evidências singulares a respeito da participação dos diversos segmentos do sistema vegetativo na formação de imagens, e da importância do cerebelo na coordenação dos fragmentos delas. Parece que cada viscerótomo, neurótomo, miótomo, ou dermátomo condiciona certas qualidade ou certa intensidade de dinamismo psíquico que tende a se manifestar como imagem em certas etapas do trabalho aferente ou eferente.”(Sandor).

“Experimentando o emergir das imagens calatônicas, suas transformações, sobreposições ou fusões entre si, percebe-se o seu dinamismo integrador e ainda outro fato bastante peculiar: a finalidade inerente, isto é, elas surgem com aquele conteúdo que para os problemas momentâneos do paciente é o mais indicado, abrangendo as áreas necessárias e – como Jung diria – “constelam” as respectivas esferas vivenciadas, as potencialidades”. (Sandor).

Observar atentamente esse processo que ocorre através do trabalho corporal é muito importante para o desenvolvimento psicológico. Na verdade essa observação atenta de si é a função religiosa da psique (religião=relegere) na acepção de Otto que Jung incorporou para descrever a religião como um instinto psicológico e o seu não atendimento como origem dos desequilíbrios físicos e psíquicos da segunda metade da vida. Religião é observar-SE e trabalho corporal cria condições para isso.

Este texto é usado como material didático no I ano do curso de Cinesiologia do Instituto Sedes Sapientiae.

Referências:

(1) Jung, “Fundamentos da Psic. Analítica” – Vozes – parágrafo 69

(2) Sándor, “Técnicas de Relaxamento”- Vetor

Indicações Bibliográficas Básicas:

Sobre Integração Fisiopsíquica:

Sandor, Petho – “Técnicas de Relaxamento”- Vetor

Farah, Rosa – “Integração Psicofísica – Cia, Ilimitada

Delmanto, Suzana – “Toques sutis” – Summus

Sobre Psicologia Analítica:

Jung – “Fundamentos da Psicologia Analítica”- “A Natureza da Psique”- ” Práticas da Psicoterapia” – “Psicologia e Religião Oriental”- Vozes

“Memórias, Sonhos, Reflexões”- Nova Fronteira

Silveira, Nise – “Jung: Vida e Obra”- José Álvaro Ed.

Sobre Trabalho Corporal e Psicologia:

Schultz, J.H. – “Treinamento Autógeno”-

Reich, Wilhem – “A Função do orgasmo”- Martins Fontes

Gaiarsa, J. – “Reich-1980”- Agora

Mindell, A .- “O Corpo Onírico”- Brasiliense

Brennan, Bárbara – “Mãos de Luz”- Pensamento

Montagu, A .- “Tocar: o Significado Humano da Pele”- Summus

Sobre os novos paradigmas da Ciência:

Sousa, W. – “O Novo Paradigma” – Cultrix

Capra, Fritjof – “O Tao da Física” – Cultrix

Toben e Wolf – “Espaço-Tempo e Além” – Cultrix

Von Franz,M.L. – “O Homem e seus Símbolos” – Aguilar

Brennan, B.- “Mãos de Luz” – Pensamento

Sobre Anatomia e Fisiologia:

Jacob e Francone: “Anatomia e Fisiologia Humana” – Guanabara

Calais-Germain,B. – “Anatomia para o movimento” – Manole

Sobre Filosofia:

Vita, Luís W. – “Pequena História da Filosofia – Saraiva

Gaarder, J. – “O Mundo de Sofia” – Cia das Letras