“O quê, afinal, eu aprendi com Sándor?” – Elvira Leme

A ouvir meus próprios passos, a batida de meu coração, e a música de minha respiração.

A tocar a alma, a valorizar as imagens e o lado esquerdo do corpo; a praticar a escuta intuitiva e a abrir-me para receber o outro. A cultivar o dom da empatia. A me comunicar sem necessidade de barreiras. A desenvolver a sensibilidade. A ser uma trabalhadora da alma, incansável, como abelha-operária em sua colméia. A transpor sistemas representacionais de separação, divisão e decodificação entre sujeito e objeto.

A ver o mundo sendo nele. A desembrulhar-me para o mundo, desvestir-me da túnica de pele e iluminar a consciência.

Aprendi a ver a pele como uma membrana fina, que separa o mundo interno e externo. Transduz informações de dentro para fora e de fora para dentro. É película sutil, elástica e flexível, mundo intermediário possibilitador do mundo imaginal.

Aprendi a mergulhar no mundo imaginativo e a perceber que o meu modo de ver é predominantemente sintético e analógico, que se expressa antes em imagens do que em palavras.

Aprendi a desenvolver a função intuitiva – ou a dar crédito a ela. É o todo que me convoca (e me aflijo por não poder traduzi-lo em conceitos).

A atender pessoas colocando-me ao seu serviço (terapia é servir!). A ter fé no processo. A acreditar que o objetivo é o processo em si. A aceitar a transitoriedade da experiência, da vida, não apreensível em esquemas. “Man is not the summit of evolution; he is a transitional being”. (Sri Aurobindo).

A receber o que herdei de meus pais como uma graça, um legítimo merecimento para meu aprendizado. A esculpir e modelar meu corpo, segundo critério fora do padrão aceito e valorizado. A descobrir o meu jeito-de-ser-neste-corpo, sua forma de funcionar, seu ritmo e movimento. A funcionar com o coração, a “pensar com o coração”, a tocar com o coração.

A ver e ouvir e conversar com as costas; tocar com as mãos, os pés, os cotovelos e joelhos; tocar com o olhar e com o sopro. Contar histórias na coluna e cantar no osso sacro.

A valorizar as minúcias, os recantos, as dobras, espaços interdigitais, os pelos e fios de cabelo.

A dar batidinhas nos ossos, desatarraxar a cabeça, andar com os pés sobre a coluna, contar tabuada no ventre, tocar o nariz e as orelhas, respirar pelas articulações, puxar e estirar, abrir e deslizar, fazer varreduras e sacudidelas. A praticar o cafuné científico, fiar a coluna, fazer cestinha nos olhos, dançar com os ombros, dançar com os pés nas paredes, dar tapinhas com a mão em concha, tocar sanfona no diafragma, fazer vibrações sutis no corpo todo. A descobrir que o choro e o riso brotam do diafragma. Fazer chacoalhões e rotações, circulinhos nos dedos dos pés, movimentos de oitos deitados e em pé, de oitinhos e oitões. A reajustar os pontos de apoio. A descomprimir fracionadamente o corpo todo. A tocar harpa nas pernas. A dar o passo do dragão, passear no mel, apanhar laranjas, movimentar-me como o moinho, a foice, o flamingo, o pêndulo.

A tocar e abrir as asas do corpo e do imaginário.

Aprendi a trabalhar com o corpo num processo de desvestir, desnudar e simultaneamente cobrir, e tapar (proteger), revestindo-o de outras qualidades: descobrir cobrindo (velando e desvelando). É a passagem da pedra bruta ao corpo sutil; desenvolvendo o corpo para torná-lo translúcido. O diáfano corpo-diamante, vida compactada e transparente, atravessado pela luz.

Aprendi com o método calatônico, a “desatar o odre, a soltar as amarras” da separação do mundo interno e externo. (khalaó, em grego indica “relaxação”, “alimentação”, “afastar-se do estado de ira, fúria, violência”, “abrir uma porta”, “desatar as amarras de um odre”, “deixar ir”, “perdoar aos pais”, “retirar todos os véus dos olhos”).

Aprendi a arte de edificar meu corpo e adquiri a experiência de Ser um corpo.

Vi e experimentei que a doença e a dor podem ser o único caminho para nos dar a conhecer e nos resgatar esta condição.

Aprendi que a pele se alarga, se amolda, se descola e desloca (decola), que contém, que arrebenta, que se estica e se encolhe, e que é fina, muito fina (já fui pele e osso). Que cada parte da estrutura corpórea, a saber, os músculos, os ossos, as fáscias, o tecido conjuntivo, as vísceras, cada articulação, cada pedaço de pele (e cada cicatriz), contam a história do vivido e estão prenhes de potencialidades que através de um toque (de um outro) podem ser despertadas.

Aprendi que há várias dimensões de toques: o toque forte, o toque firme, o toque sutil, o toque sem toque, o toque de polaridades, o toque imaginado.

Aprendi a observar o corpo; a percorrê-lo dos pés à cabeça, a perceber seus espaços internos e externos, a observar suas linhas, sinuosidades, dimensões de largura e comprimento, proporções, correspondências, polaridades. A viajar por seus diversos humores e estados.

A colocar-me no espaço, a ganhar espaço; a respeitar a origem, o fundamento, a respeitar os limites, a ver através da fina película – véu da pele.

Aprendi a recriar o corpo através do toque – tão simbólico quanto o corpo.

Aprendi a ver com as mãos, a escutar com o corpo, a tocar com os olhos, a ouvir com o coração, a sorrir com os pés, a chorar com os quadris.

Aprendi a ser pedra e a ser flor. A ser verde e amarela, azul e violeta, num transformismo camaleônico.

Aprendi a acreditar no poder criador e regenerador. A ouvir a voz do silêncio. O barulho do intestino. A escutar à distância e a ver de perto. A dançar sobre águas e voar com asas invisíveis. A olhar para a noite e enxergar o sol e para a lua cheia e ver sua face luminosa. A cantarolar como pássaro e assobiar como criança. A dançar a dança guerreira do índio e o sacolejar como um sambista. A virar sapo e princesa e a lembrar das mais doces lembranças.

Aprendi a me virar, após muitos revirares. A dar cambalhotas e ver o mundo de ponta-cabeça, a erguer os pés para o céu e receber suas bênçãos. A virar a bunda para a lua e dormir em paz. A sentir o sentido da vida nas pequenas coisas. A pegar no imaterial, no impalpável com mãos de fada. A acariciar o macio, a acolher o duro e a amaciar. A participar da transformação, passo a passo, sendo surpreendida e surpreendendo-me. Aprendi que devo caminhar com a certeza de um devoto, a fidelidade de um samurai e a paciência de um monge.

Aprendi a ser cientista – da psique; cultivadora de pomares e de plantas, das mais comuns às mais exóticas, jardineira cuidadosa.

A zelar pelo maior patrimônio: a casa-templo que nos foi dada


O CORPO – METÁFORA DA EXISTÊNCIA

Corpo semente-nascente-emergente

Corpo abortado

não regado

Corpo desabrochante

florido

maduro

receptáculo e doador

Corpo ferido ou mutilado esquecido

Corpo-lua: novo, minguante, crescente, cheio

Corpo sol-luz

dia noite

Corpo – mente Corpo – corpo Corpo concreto e abstrato

claro escuro

azul, lilás, amarelo

Corpo multicolorido

Corpo criança velho Corpo animal (sangue)

Corpo mulher adolescente e aborrecente homem

Corpo vivo

morto parado em movimento

Corpo fértil seco nutrido subnutrido

doente sadio

Corpo alimento Corpo seiva Corpo protegido e ao relento

Corpo alegria Corpo tristeza

Corpo multiplicador Corpo grávido Corpo mutante-dançante

Corpo indivíduo Corpo grupo

Corpo doce e amargo suave e pesado gordo e magro

Corpo prisão

Corpo libertação

Corpo Dor Corpo Amor

Corpo humano Corpo divino

Corpo matéria Corpo energia

Corpo terra Corpo universo

Corpo mãe e da mãe Corpo Pai, Filho e Espírito Santo Corpo Sagrado

Corpo padrão

Corpo modelo

Corpo formatado

Corpo construção Corpo templo Corpo cosmos

Corpo que se sabe Corpo que se esquece

Corpo adormecido Corpo acordado

Corpo alado Corpo-raiz

Corpo que fala Corpo metamorfoseado Corpo que cala

Aprendi a Ser um corpo e a entrar em contato com a sabedoria implícita no processo de construção deste ser através do corpo.