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“Como eles recebem o trabalho corporal? – Paciente 2” – Terapeuta Ana Maria Galrão Rios

(Revista “Hermes” – no. 1)

Quando eu estava tentando encontrar um tema sobre o qual escrever, e já a ponto de desistir, a nossa eterna aliada sincronicidade me ajudou e, numa sessão de terapia, uma paciente comentou que gostaria de ser escritora. É uma mulher adulta, profissional na área da saúde, inteligente, sensível e introvertida. Como ela tem por hábito escrever cartas, eu pedi a ela que escrevesse sobre suas impressões a respeito do trabalho corporal na terapia para que, eventualmente publicássemos nesta revista. Ela, muito corajosamente, resolveu correr o risco.

Antes de qualquer coisa gostada de agradecer a ela pela generosidade em partilhar suas experiências, pela ousadia, honestidade e sensibilidade que demonstra, neste artigo, nas sessões e na sua vida.

Seu relato foi o seguinte:

“Lá estava eu deitada naquela cama turca, coberta com uma manta xadrez que deixava as pés de fora descobertos. Naquela hora sempre tinha uma preocupação besta: “Será que meus pés estão bem limpos ? Olhava o teto e pensava que tudo aquilo era muito estranho: era de manhã, tantas coisas haviam para serem feitas em casa: montes de roupa para pôr na máquina de lavar, o almoço por fazer (acho que hoje será salsicha novamente ), todas aquelas tarefas chatas, e ainda havia o trabalho fora de casa à tarde, e eu ali, feito uma idiota olhando o teto branco, escutando as passarinhos cantando lá fora (sempre escutava um sabiá), e me sentindo terrivelmente mal.

O que me segurava ali, naquele consultório, era o sofrimento que, não sei como, havia tomado conta de mim e que agora já parecia um monstro faminto prestes a me devorar.

O meu mundo até então, feito de coisas simples banais comuns a qualquer mulher casada com filhos, profissão, casa, cachorro, gato, papagaio, parecia que desmoronava, que se desfazia como uma massa sem consistência.

O que estava acontecendo? Não sabia responder. Não sabia ver onde estava o erro.

Será que “aquilo ” faria algum bem para mim? Faria alguma coisa mudar na minha vida? Eu mudaria meu pensamento com relação ao mundo, às pessoas? Faria alguma diferença no final? Não sabia. Mas, enfim, estava ali deitada tentando fazer alguma coisa por mim mesma. Acho.

“Ela” pegava nos meus pés, dedo por dedo, e eu sentia aquele toque suave de sua mão, e, ao invés de me sentir bem, relaxada como eu achava que deveria sentir mais irritada eu ficava. A vontade era chutar sua mãe, seu rosto, gritar jogar fora as cobertas e sair correndo porta a fora.

As vezes aquilo tudo me parecia uma espécie de charlatanismo, de “benzeção”, de passe espiritual.

“Relaxe”, vinha uma voz suave de muito longe. E eu me sentia aninhar naquela cama. Às vezes as mãos cresciam parecia que ficavam enormes, como mãos de gigante. Somente as mãos ficavam enormes, o corpo continuava pequenininho. Então eu me lembrava daquele livro que havia lido na adolescência onde um homem acordava de manhã e percebia que havia se transformado em barata.

Talvez ocorra alguma transformação em mim também Talvez eu me transforme também num bicho, num gigante, ou num ser disforme com corpo pequeno e cabeça bem grande, ou corpo pequeno mãos grandes.

E então começava a ficar com vontade de rir. Rir mesmo, gargalhar. Achava aquilo tudo meio sem sentido, meio ridículo.

– “Sinta a cabeça. o pescoço, os braços. Sinta seu corpo. ” E eu escutava aquela voz suave, vinda de longe.

Mas aquele toque de sua mão continuava me irritando. Ainda havia os montes de roupa em casa ainda havia o sofrimento, ainda havia a falta de sentido em tudo, ainda havia a indiferença, ainda havia a vontade de continuar tentando. Tentando o quê? Para quê?

Estar viva sentir-se viver buscar a felicidade, estar em paz ficar em paz comigo mesma. Ser feliz!

Talvez fosse melhor procurar uma nova religião. Talvez não fosse encontrar ali, naquela espécie de massagem, ou de relaxamento (não consegui guardar a nome “daquilo “) nenhuma resposta a todas as minhas questões. Quem sabe o Budismo? Não havia tentado esta não conhecia esta religião ainda.

Mas felicidade, paz de espírito, são apenas conceitos, não são?

Aquela mão no meu rosto me dava vontade de segurar em sua mão, apertar bem forte, sentir seu toque mais forte, pedir para parar com aquilo. Não continue, por favor.

Pronto, lá vem a memória de novo, trazendo coisas velhas, esquecidas, sofridos. ” – Mãe, me põe no colo. ” Peço de novo hoje. Não era um pedido de criança mas um me põe no colo agora. Sou criança agora. Sou criança ainda Tenho quatro anos e choro.

“- Mãe, quero você agora quero seu colo, quem chorar sem motivo, sem ninguém me pedindo para eu parar.”

Pronto, acabou. Não havia mais nenhuma mão pegando no meu corpo. Que alívio! E eu lá, afundada na cama as pernas pesadas, os braços pesados, as lágrimas escorrendo pelo canto dos olhos, tentando disfarçar e sentindo um alívio tão grande, como quem passou por uma prova de coragem. A cadeira do dentista é melhor pensei, lá eu durmo.

“- Sinta seus pés, seus braços, movimente devagar seu corpo… ” a voz suave dizia.

E eu começava a me mexer a me mover e sair daquele mundo confuso e tenso. Agora vou sair correndo pela porta a fora e não volto mais. Nunca mais. Não quero mais.

“- Tudo bem? ” a voz perguntou.

“- Tudo. ” (lá vem aquela pergunta quer ver?)

“- Alguma observação?”

“- Nada (Não falei que viria?) Só um peso nas pernas”

Como poderia, em poucas palavras, descrever um universo confuso, sem seqüência, sem lógica cheio de sentimentos fortes, de vontades estranhas?

Como poderiam as palavras traduzir, filtrar o que a mente divagava em poucos minutos?

Acho melhor ficar calada.

Mas sabia que na semana seguinte começada tudo novamente: o medo, a ansiedade, a vontade de sair correndo, a vontade de chorar sem saber porque, a mão crescendo, a vontade de rir, a cabeça crescendo, sentindo-me flutuando no espaço sabendo que não estava, ou aquela sensação do mundo de cabeça para baixo, as paredes entortando, a cama virada, a acama rodando no sentido horário, no sentido anti-horário, em todos os sentidos…

Sei lá quantas coisas diferentes seriam ainda sentidas, e a resposta seria sempre a mesma: tudo bem!

Como dizer tudo isso assim com todas as letras, com todas as palavras? Soam como maluquices, invenção, me atordoam me levam para não sei onde. Melhor ficar quieta. Já vi muitos fantasmas por aí. Não os quero mais comigo.

Quem sabe isto funcione como uma espécie de exorcismo, e eles vão embora e não voltam mais.

Os fantasmas foram embora sim!

Mas não foram embora de uma hora para outra, não.

Atormentaram nas noites de insônia, invadiram meus sonhos em tenebrosos pesadelos, conversaram longamente comigo nas horas a sós comigo mesma. Alguns foram embora para sempre, outros deixaram de ser fantasmas e se tomaram amigos, mas alguns ainda estão aqui, insistiram em ficar e voltam a me assombrar quando me ponho a vasculhar os cantos de minha mente em busca de explicações ou de sentido, ou de soluções para os enigmas que surgem, para os quais não encontro, na maioria das vezes, uma resposta um caminho, e me perco com suas aparições.

Ao penetrar neste mundo meio mágico, meio místico, meio científico, meio irracional, meio emocional (desculpe, Ana, por alguns adjetivos), me encantei com tudo que passei a conhecer, e a ter uma visão diferente da que até então tinha de mim mesma do mundo ao meu redor, das pessoas que conhecia ou com quem convivo, de tudo, enfim.

Esta nova visão do mundo e este deslumbramento todo, fez com que eu passasse a falar a falar mais ou menos como a Emília, do sítio do Pica-pau Amarelo, que, após tomar as pílulas que a tornaram uma boneca falante, falou por horas seguidas até cair desmaiada.

“- É fala recolhida “, diagnosticou o Dr. Caramujo, na estória. Acho que era meu caso também: tratava-se de um problema de fala recolhida associado a outras coisas.

E, após essa falação toda tive alguns efeitos colaterais da mesma senti-me frágil e vulnerável perante uma pessoa que, de repente, conhecia tudo a meu respeito, e para a qual eu havia exposto minha alma e que, levado por mim conheceu minhas dores, fracassos, temores, anseios e vitórias, e da qual eu sabia apenas o nome e o número do telefone, para recorrer nas horas de angústia e ansiedade.

Esta dependência de outra pessoa que se instala a partir das confidências feitas, acaba também nos sufocando de certa maneira e sendo uma questão a mais a ser resolvida. Esta via de mão única me incomoda bastante. Tento ainda me esconder para não mais ser pega na minha própria rede, como quando criança entrava debaixo da cama para me esconder do farmacêutico e não tomar injeção. Sempre pensava que lá ninguém me acharia.

E ainda hoje, mesmo tendo passado todo esse tempo de terapia e a minha confiança em você chegue perto do ilimitado, eu me pergunto se realmente você tem a exata noção do peso e da responsabilidade que é entrar na vida de uma pessoa vasculhando cada canto escondido, e fazê-la acreditar que seu sonho é possível de se realizar seja ele qual for? Que não há limites para sonhar? Que não há limites para se querer ou para quando se quer tentar?

Vamos trocar de cadeira e fazer uma nova brincadeira: agora eu escuto e você fala Você vai me contar qual é a sua fantasia maior, qual seu sonho que não se realizou, sua frustração, medos, alegrias, tristezas, me dizer afinal, quem é você.

Esta é a minha fantasia maior em relação a você como terapeuta.

Afinal, é isto o que sinto como paciente de uma terapia.

Ana, agora é diretamente com você? Por tudo isso, não vou entrar nesta fantasia que posso voltar a sonhar como uma adolescente, que ainda há tempo na minha vida para me tomar uma jornalista ou uma profissional desta área porque na minha ótica é preciso mais que a vontade e o sonho. É necessário o prepara técnico para isso. Esta fantasia de sonhar e realizar os sonhos, penso ser mais sua do que minha. Talvez seja essa a sua fantasia em relação a mim.

Só estou cansada do que faço, e, num momento de fraqueza, quando a minha inteligência dormia e a minha alma perambulava, um duende plantou essa idéia não sei se em mim ou em você, ou se deixei escapar que, em dia já muito distante, sonhei em ser jornalista. Sonhei.”

Maria Isabel Marcondes Pontes

*

A Terapeuta:

“O que eu posso fazer para dar um empurrão no seu sonho, Bel, é publicar seu relato aqui. Se meu sobrenome fosse Frias, Mesquita ou Marinho, você pode imaginar, (provavelmente apavorada), onde estaríamos agora. Como eu já disse, não quero ser sua única fã. É uma posição desnecessariamente solitária…

Quanto a mim, o que eu tenho a dizer é que, enquanto cada pessoa que eu encontrar me der a oportunidade de sonhar para ela um sonho, meu trabalho tem sentido.

E tudo vale a pena.”

Ana Galrão